terça-feira, 18 de março de 2014

Teologia Fundamental

A PARÁBOLA DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Parte I

Com base na narrativa que consta do Livro dos Números e que continua no Livro do Deuteronômio, ambos do Antigo Testamento, acerca da caminhada do povo de Israel rumo à terra prometida tendo à frente o patriarca Moisés, são destacados pelo autor três importantes passos adotados:
a)    Primeiro: avaliar o período do deserto e as provas nele passadas;

b)  Segundo: considerar com seriedade as advertências agora transmitidas para que a posse da terra traga felicidade; e

c)    Terceiro: ter sempre na mente a memória do tempo passado.

Esta esquematização é fundamental para descrever a parábola da Teologia Fundamental segundo a qual ao depararmo-nos com o momento mais crítico e difícil, somos levados a esquecer do período de “deserto” e correr para a “terra prometida” sem nos darmos conta da necessidade de uma adequada preparação. Esta preparação está relacionada com o “recenseamento” de todo instrumental herdado do tempo da necessária reflexão para purificação e a conversão, que nos precedeu ao período do “deserto”.
Releva notar que, da época do deserto, brota o ensinamento de que a excessiva ênfase na argumentação racional faz perder o sentido do mistério que tem necessidade, primariamente, de exprimir-se por si. Assim, não se deve esquecer que nossos dias caracterizam-se hoje por uma quase espasmódica busca de sentido autêntico da existência unida, contraditoriamente, a uma forte indiferença e a tibieza.  
Neste sentido, temos o fato de que a memória histórica permite-nos saber que existe um patrimônio eclesial, histórico e cultural, por toda a tradição teológica e por sua história, que não se pode desprezar sob pena de que não sabermos como nos orientar. O período histórico em questão se identifica, praticamente, com a teologia escolástica[1] e seu momento áureo se dá com a publicação, em 1879, da encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII,  onde se destaca que o cerne da questão  está, mais uma vez, na relação entre fé e razão, que encontrara no período da Idade Média sua síntese orgânica. Assim, a filosofia se relaciona com a fé e a teologia por uma tríplice passagem relacionada aos momentos constitutivos do ato de fé. Antes do ato de fé, a filosofia prepara os ânimos para receber e acolher a revelação. O uso da filosofia é exigido para que a teologia possua a natureza, a forma e característica de uma verdadeira ciência.
Desta forma, a teologia detinha traços eclesiocêntricos e trazia consigo a observância de três autoridades: Escritura, Tradição e Magistério. Mas o seu verdadeiro centro foi a assunção da teologia do Magistério, que se torna, por isso mesmo fiadora da produção teológica por força do próprio carisma de infalibilidade e pela ausência de metodologia para o uso das duas outras fontes. A teologia tornou-se, então, uma coleção de textos do Magistério e o Denzinger foi assumido como modelo normativo. A partir dessas premissas gerais foram criadas as condições para estruturar-se a teologia fundamental, como base no modo apologético, com peculiaridades de gênero “manual” e de um método puramente defensivo.
A tripartição em uso no tratado, por si só de origens mais remotas, tinha o objetivo de apresentar a globalidade da revelação cristã à luz de três categorias que reportavam a três destinatários diferentes, a saber:
a)  A demonstratio religiosa: versava sobre a demonstração do valor objetivo da religião e sobre a necessidade para cada um crer e o destinatário é o ateu. Devia-se mostrar a ele o “De vera religione”;
b)    A demonstratio christiana: versava sobre o valor salvífico do cristianismo e sobre sua superioridade diante de outras religiões. O tratado era desenvolvido por meio da análise dos “títulos cristológicos”. Dirigia-se esta demonstração especialmente aos não cristãos.
c)    A demonstratio catholica: Dirigia-se a não católicos para mostrar não só que a única Igreja desejada por Cristo era a católica, mas também que para se conseguir a salvação era necessário o ingresso nessa Igreja.
Dai surgiram três tipos de demonstrações – via histórica, via notarum e via empírica – que constituíram a estrutura de sustentação e de conteúdo da apologética. A  teologia dos manuais abraçou o método dedutivo, presente, sobretudo, na linguagem onde são empregados termos típicos desse método, tais como: “demonstrar” e “provar”. Em face dessa característica os métodos “imanência”, “histórico”, ou “exegético-hermenêutico” não encontraram ressonância nesta teologia.
Essa trilha levou a uma “justaposição” entre a fé e a razão que, mesmo sobre um mesmo teto, jamais se encontrariam. Repetia-se aquilo que o Vaticano I sancionara: a razão chega a verdades “naturais”, mas somente a fé abre o caminho para as sobrenaturais, tornando estranhas uma à outra com a instrumentalização da filosofia e uma definição redutiva da teologia. Tal situação implicou em um crescente fosso entre a sociedade e a teologia já que a apologética punha como destaque de toda a sua força demonstrativa a evidência dos sinais da revelação, mas eles, de qualquer forma, eram argumentações externas para a confirmação do fato da revelação. Entre o “fato” e o “senso” da revelação criava-se uma fratura insustentável. Tem-se a impressão, estudando os manuais de apologética, de que se fala de Cristo prescindindo dele. No entanto, a teologia dos manuais teve méritos ao ter sido profundamente interpelada pelas sugestões de seus contemporâneos e não ter deixado escapar a oportunidade de conhecer e saber avaliar as exigências apresentadas. Além disso, em um período de forte fragmentação e incerteza cultural, ela soube representar uma unidade de fundo e em qualquer lugar do mundo era possível encontrar a mesma linguagem.
A renovação da teologia fundamental a partir do Concílio Vaticano II não é apenas uma questão de imagem, mas também de conteúdo, de métodos e de destinatários. Considera-se a constituição Dei Vebum, a magna carta dessa renovação e a força motriz de uma evolução teológica que se estende até os nossos dias. Sem ela, a teologia fundamental não teria jamais podido conseguir a renovação que auspiciava a si mesma, e a própria teologia não teria podido conseguir os resultados que estão ao alcance de todos. Uma palavra-chave poderia facilmente exprimir o movimento teológico desencadeado pelo Concílio: redescoberta.
Essa redescoberta se deu em diversas dimensões, a saber:

Redescoberta da pessoa de Cristo
Jesus Cristo mostra com clareza a inteireza de sua pessoa que se encontra na identidade entre o ser Revelador do Pai e sua definitiva Revelação.
Redescoberta da Igreja “ministro” da Palavra
É a vida da comunidade. Os leigos são reconhecidos, como também os carismas e ministérios. A Igreja se apresenta como mediação da Revelação e transmite fielmente o anúncio de salvação. Adquire a autoconsciência de uma Igreja que necessita de conversão permanente. É santa e pecadora.
Redescoberta do destinatário da revelação
O sujeito a quem a revelação é endereçada e o seu objetivo último: a salvação da humanidade. Recupera-se uma das peculiaridades da teologia fundamental: a de ser um lugar de encontro com todos. Destaca-se a gratuidade com a qual Deus faz conhecer o mistério de sua vida.
Redescoberta das Escrituras
A Palavra de Deus voltou a instruir gerações de crentes que, com algum esforço, conseguem compreender a riqueza ao alcance de suas mãos.

O contexto histórico-cultural em que se desenvolve é o que chamamos de modernidade. Há o predomínio da razão e as diversas formas de ateísmo que daí derivam. A religião conflui progressivamente para a filosofia e esta se torna o critério último de toda forma de saber. Impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, o homem se acha autossuficiente e torna-se o centro do cosmo. Os filósofos sentem-se à vontade para colocar em dúvida a existência de Deus.
Nesse contexto a necessidade da teologia fundamental é urgente e se reflete em algumas situações:
a)    O crente precisa saber dar a razão da sua fé.
b)    Necessidade que o homem tem de dar sentido à sua existência.
c)    Necessidade de fundação de uma pastoral global, que promova o diálogo entre a teologia e a ação pastoral.
Na tentativa de se definir a identidade da teologia fundamental, reconhece-se que ela não é um dado completamente adquirido, mas apresenta-se como:
a)    Ciência que estuda o evento da revelação e sua credibilidade.
b)    Disciplina que constitui a função do saber teológico em seu fundar-se a respeito de outras ciências.
c)    Introdução ao mistério de Cristo.
       A teologia fundamental é a consciência da necessidade de dar uma resposta de esperança da fé ao homem pós-moderno, expressa em 1Pd, 3,15: “Estai sempre dispostos a justificar vossa esperança perante aqueles que dela vos pedem conta.”
Com efeito, ficou devidamente evidenciado que o retrato da Teologia Fundamental de hoje é fruto de uma longa caminhada e que a evolução culminou em um avanço de conteúdo, de método e de destinatários. Tratava-se de uma teologia dos manuais focada unicamente no Magistério, que se utilizava da apologética, era eclesiocêntrica e tinha como destinatários os ateus, os não cristãos e os cristãos. 
Evoluiu-se para uma teologia Cristocêntrica efetivamente baseada na Tradição, no Magistério, e com maior destaque, nas Sagradas Escrituras com uma apresentação positiva do ensinamento da Igreja, baseando-se no diálogo e no ecumenismo, tendo como destinatários todo homem, numa visão de amor e que tem buscado incessantemente vencer os desafios de resgatar e conferir dignidade a todos os homens e mulheres de um mundo que se diz pós-moderno, mas que, pelos comportamentos e atitudes, parece ter voltado ao tempo das cavernas pré-históricas.

Referência:
FISICHELLA, RINO. Introdução à Teologia Fundamental, 3. ed. São Paulo: Loyola, 2011.



[1] Conhecida como teologia dos manuais


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