A PARÁBOLA DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Parte I
Com
base na narrativa que consta do Livro dos Números e que continua no Livro do
Deuteronômio, ambos do Antigo Testamento, acerca da caminhada do povo de Israel
rumo à terra prometida tendo à frente o patriarca Moisés, são destacados pelo
autor três importantes passos adotados:
a)
Primeiro:
avaliar o período do deserto e as provas nele passadas;
b) Segundo:
considerar com seriedade as advertências agora transmitidas para que a posse da
terra traga felicidade; e
c)
Terceiro:
ter sempre na mente a memória do tempo passado.
Esta
esquematização é fundamental para descrever a parábola da Teologia Fundamental
segundo a qual ao depararmo-nos com o momento mais crítico e difícil, somos
levados a esquecer do período de “deserto” e correr para a “terra prometida”
sem nos darmos conta da necessidade de uma adequada preparação. Esta preparação
está relacionada com o “recenseamento” de todo instrumental herdado do tempo da
necessária reflexão para purificação e a conversão, que nos precedeu ao período
do “deserto”.
Releva
notar que, da época do deserto, brota o ensinamento de que a excessiva ênfase
na argumentação racional faz perder o sentido do mistério que tem necessidade,
primariamente, de exprimir-se por si. Assim, não se deve esquecer que nossos
dias caracterizam-se hoje por uma quase espasmódica busca de sentido autêntico
da existência unida, contraditoriamente, a uma forte indiferença e a tibieza.
Neste
sentido, temos o fato de que a memória histórica permite-nos saber que existe
um patrimônio eclesial, histórico e cultural, por toda a tradição teológica e
por sua história, que não se pode desprezar sob pena de que não sabermos como
nos orientar. O período histórico em questão se identifica, praticamente, com a
teologia escolástica[1] e seu momento áureo se dá
com a publicação, em 1879, da encíclica Aeterni
Patris, de Leão XIII, onde se
destaca que o cerne da questão está,
mais uma vez, na relação entre fé e razão, que encontrara no período da Idade
Média sua síntese orgânica. Assim, a filosofia se relaciona com a fé e a
teologia por uma tríplice passagem relacionada aos momentos constitutivos do
ato de fé. Antes do ato de fé, a filosofia prepara os ânimos para receber e
acolher a revelação. O uso da filosofia é exigido para que a teologia possua a
natureza, a forma e característica de uma verdadeira ciência.
Desta
forma, a teologia detinha traços eclesiocêntricos e trazia consigo a
observância de três autoridades: Escritura, Tradição e Magistério. Mas o seu
verdadeiro centro foi a assunção da teologia do Magistério, que se torna, por
isso mesmo fiadora da produção teológica por força do próprio carisma de infalibilidade
e pela ausência de metodologia para o uso das duas outras fontes. A teologia
tornou-se, então, uma coleção de textos do Magistério e o Denzinger foi
assumido como modelo normativo. A partir dessas premissas gerais foram criadas
as condições para estruturar-se a teologia fundamental, como base no modo
apologético, com peculiaridades de gênero “manual” e de um método puramente
defensivo.
A
tripartição em uso no tratado, por si só de origens mais remotas, tinha o
objetivo de apresentar a globalidade da revelação cristã à luz de três
categorias que reportavam a três destinatários diferentes, a saber:
a) A
demonstratio
religiosa: versava sobre a demonstração do valor objetivo da religião e
sobre a necessidade para cada um crer e o destinatário é o ateu. Devia-se
mostrar a ele o “De vera religione”;
b)
A
demonstratio
christiana: versava sobre o valor salvífico do cristianismo e sobre sua
superioridade diante de outras religiões. O tratado era desenvolvido por meio
da análise dos “títulos cristológicos”. Dirigia-se esta demonstração
especialmente aos não cristãos.
c)
A
demonstratio
catholica: Dirigia-se a não
católicos para mostrar não só que a única Igreja desejada por Cristo era a
católica, mas também que para se conseguir a salvação era necessário o ingresso
nessa Igreja.
Dai
surgiram três tipos de demonstrações – via
histórica, via notarum e via empírica – que constituíram a
estrutura de sustentação e de conteúdo da apologética. A teologia dos manuais abraçou o método
dedutivo, presente, sobretudo, na linguagem onde são empregados termos típicos
desse método, tais como: “demonstrar” e “provar”. Em face dessa característica
os métodos “imanência”, “histórico”, ou “exegético-hermenêutico” não encontraram
ressonância nesta teologia.
Essa
trilha levou a uma “justaposição” entre a fé e a razão que, mesmo sobre um
mesmo teto, jamais se encontrariam. Repetia-se aquilo que o Vaticano I
sancionara: a razão chega a verdades “naturais”, mas somente a fé abre o
caminho para as sobrenaturais, tornando estranhas uma à outra com a
instrumentalização da filosofia e uma definição redutiva da teologia. Tal
situação implicou em um crescente fosso entre a sociedade e a teologia já que a
apologética punha como destaque de toda a sua força demonstrativa a evidência
dos sinais da revelação, mas eles, de qualquer forma, eram argumentações
externas para a confirmação do fato da revelação. Entre o “fato” e o “senso” da
revelação criava-se uma fratura insustentável. Tem-se a impressão, estudando os
manuais de apologética, de que se fala de Cristo prescindindo dele. No entanto,
a teologia dos manuais teve méritos ao ter sido profundamente interpelada pelas
sugestões de seus contemporâneos e não ter deixado escapar a oportunidade de
conhecer e saber avaliar as exigências apresentadas. Além disso, em um período
de forte fragmentação e incerteza cultural, ela soube representar uma unidade
de fundo e em qualquer lugar do mundo era possível encontrar a mesma linguagem.
A
renovação da teologia fundamental a partir do Concílio Vaticano II não é apenas
uma questão de imagem, mas também de conteúdo, de métodos e de destinatários. Considera-se
a constituição Dei Vebum, a magna
carta dessa renovação e a força motriz de uma evolução teológica que se estende
até os nossos dias. Sem ela, a teologia fundamental não teria jamais podido
conseguir a renovação que auspiciava a si mesma, e a própria teologia não teria
podido conseguir os resultados que estão ao alcance de todos. Uma palavra-chave
poderia facilmente exprimir o movimento teológico desencadeado pelo Concílio:
redescoberta.
Essa
redescoberta se deu em diversas dimensões, a saber:
Redescoberta da pessoa de Cristo
|
Jesus Cristo mostra com clareza a inteireza
de sua pessoa que se encontra na identidade entre o ser Revelador do Pai e
sua definitiva Revelação.
|
Redescoberta da Igreja “ministro” da
Palavra
|
É a vida da comunidade. Os leigos são
reconhecidos, como também os carismas e ministérios. A Igreja se apresenta como mediação da Revelação e transmite
fielmente o anúncio de salvação. Adquire a autoconsciência de uma Igreja que
necessita de conversão permanente. É santa e pecadora.
|
Redescoberta do destinatário da revelação
|
O sujeito a quem a revelação é endereçada e
o seu objetivo último: a salvação da humanidade. Recupera-se uma das
peculiaridades da teologia fundamental: a de ser um lugar de encontro com
todos. Destaca-se a gratuidade com a qual Deus faz conhecer o mistério de sua
vida.
|
Redescoberta das Escrituras
|
A Palavra de Deus voltou a instruir
gerações de crentes que, com algum esforço, conseguem compreender a riqueza
ao alcance de suas mãos.
|
O contexto
histórico-cultural em que se desenvolve é o que chamamos de modernidade. Há o
predomínio da razão e as diversas formas de ateísmo que daí derivam. A religião
conflui progressivamente para a filosofia e esta se torna o critério último de
toda forma de saber. Impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, o homem se
acha autossuficiente e torna-se o centro do cosmo. Os filósofos sentem-se à
vontade para colocar em dúvida a existência de Deus.
Nesse
contexto a necessidade da teologia fundamental é urgente e se reflete em
algumas situações:
a)
O crente precisa saber dar a razão da sua fé.
b)
Necessidade que o homem tem de dar sentido à
sua existência.
c)
Necessidade de fundação de uma pastoral
global, que promova o diálogo entre a teologia e a ação pastoral.
Na tentativa
de se definir a identidade da teologia fundamental, reconhece-se que ela não é
um dado completamente adquirido, mas apresenta-se como:
a)
Ciência que estuda o evento da revelação e sua
credibilidade.
b)
Disciplina que constitui a função do saber
teológico em seu fundar-se a respeito de outras ciências.
c)
Introdução ao mistério de Cristo.
A
teologia fundamental é a consciência da necessidade de dar uma resposta de
esperança da fé ao homem pós-moderno, expressa em 1Pd, 3,15: “Estai sempre
dispostos a justificar vossa esperança perante aqueles que dela vos pedem
conta.”
Com efeito, ficou devidamente evidenciado que
o retrato da Teologia Fundamental de hoje é fruto de uma longa caminhada e que
a evolução culminou em um avanço de conteúdo, de método e de destinatários. Tratava-se de uma teologia dos manuais focada unicamente no Magistério,
que se utilizava da apologética, era eclesiocêntrica e tinha como destinatários
os ateus, os não cristãos e os cristãos.
Evoluiu-se para uma teologia
Cristocêntrica efetivamente baseada na Tradição, no Magistério, e com maior destaque,
nas Sagradas Escrituras com uma apresentação positiva do ensinamento da Igreja,
baseando-se no diálogo e no ecumenismo, tendo como destinatários todo homem,
numa visão de amor e que tem buscado incessantemente vencer os desafios de
resgatar e conferir dignidade a todos os homens e mulheres de um mundo que se
diz pós-moderno, mas que, pelos comportamentos e atitudes, parece ter voltado
ao tempo das cavernas pré-históricas.
Referência:
FISICHELLA, RINO. Introdução à Teologia Fundamental,
3. ed. São Paulo: Loyola, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário