A Questão dos Evangelhos Sinóticos
Parte Final
Os três evangelhos têm em comum 330
versículos. Isso não quer dizer que esses textos em comum sejam exatamente
iguais nos três evangelhos. Para ilustrar esta questão podemos citar o texto
que fala da recompensa dada aos que deixam tudo para seguir a Jesus que se
encontra nos três evangelhos, a saber: Mc 10,28-31; Mt 19,27-30 e Lc 18,28-30.
À primeira vista, os três dizem a
mesma coisa. Todavia, olhando de perto tais textos, podemos descobrir
características próprias de cada evangelho. Assim, Marcos é o único a falar das
perseguições que acompanham a recompensa; somente Lucas fala de pessoas que
deixaram a mulher. Diferenças como tais são encontradas em outras partes dos
três evangelhos.
Uma das teorias levantadas para
explicar tais diferenças, diz respeito à cronologia em que os textos foram
elaborados. Sendo Marcos o evangelho mais antigo, é normal pensar que Mateus e
Lucas usaram de liberdade e criatividade essa fonte. Mas isso nos permite
constatar que os evangelhos não são reportagens sobre Jesus. Os que gostariam
que ele tivesse dito exatamente aquilo que está nos evangelhos reagem com certa
perplexidade. Para pergunta de quem foi o avô paterno de Jesus, Marcos nada
diz. Mas Lucas diz que foi Eli, pai de José (Lc 3,23) e Mateus, ao contrário,
afirma que o pai de José se chamava Jacó (Mt 1,15b-16a). Como superar esse
impasse? Somente estando a par das intenções de cada um dos evangelistas é que
conseguiremos superar a dificuldade à primeira vista intransponível. É há
muitos casos assim nos evangelhos.
Cada evangelista apresenta um rosto
próprio de Jesus e de sua mensagem. O Jesus apresentado por um evangelista não
é exatamente o mesmo que podemos encontrar em outro evangelho. Porque cada um
escolheu o que mais convinha às suas comunidades.
Os sinóticos, de maneira concorde,
apresentam o material recebido pela tradição em um esboço geográfico que
distribui a atividade de Jesus na Galileia, na Samaria e em Jerusalém. Marcos
destaca o ministério de Jesus na Galileia, ministério ao qual dedica a metade
do seu evangelho (1,16-8,26), enquanto Mateus lhe dedica pouco mais de um terço
(4,12-13,58) e Lucas pouco mais de um sexto (4,14-9,50). O terceiro
evangelista, por sua vez, destina grande espaço ao período central, à viagem da
Samaria e Jerusalém, durante a qual recolhe material diverso (9,51-19,28),
restrito em Mateus (14,1-20,34), ainda mais breve em Marcos (8,27-10,52).
Mateus frisa a narração dos acontecimentos em Jerusalém e desenvolve a parte
introdutória (1,1-4,11), concordando com Lucas (1,1-4,13): ambos dão ênfase que
à infância de Jesus quer à narração da ressurreição. Marcos apenas faz aceno a
esta (16,1-8) e ignora a infância.
No particular, é importante entender
a intenção do narrador e o destinatário de sua obra. Marcos está interessado em
uma visão cristológica. Pretende apresentar o mistério de Jesus, desvelado e,
ao mesmo tempo, velado pelo poder das obras e pela impotência da paixão, em
duas modalidades diferentes e complementares. De seu ponto de vista, Jesus é
reconhecido “Filho de Deus” do início (1,1) ao fim (15,39). Por isso a
incompreensão dos discípulos (6,52; 9,32) e as proibições de revelar a sua
identidade (segredo messiânico: 8,30; 9,9), como o estado de cegueira
(10,46-52) pertencem ao passado. Agora é urgente proclamar o evangelho para
todos (13,9-11), exprimir a profissão de fé na Messianidade (8,27-29) e divindade
de Jesus (9,7). O cristão, a quem o evangelho se destina, tem necessidade por
sua vez de percorrer de novo o caminho da incompreensão à inteligência, da
cegueira à luz, seja porque apenas uma leitura repetida da narração lhe permite
penetrar profundamente no mistério inexaurível do homem-Deus, seja porque é
convidado a proclamá-lo perante os outros.
Nesse sentido, o evangelho de Marcos,
primeiramente dirigido para quem já experimentou em si a força da paixão, é
adequado também para o pagão, exortado, no final, como o centurião sob a cruz,
a expressar o ato de fé e a recomeçar a leitura desde o início. Parte-se do
Jesus conhecido como ressuscitado para atingir a comunidade. O destinatário da
mensagem é convidado pela experiência de fé a voltar a Jesus, percorrendo de
movo as etapas (caminho) da sua revelação.
Por seu turno, Mateus proclama Jesus
Senhor e mestre e o considera principalmente em uma perspectiva comunitária.
Mateus retira a ignorância e a cegueira dos discípulos, conserva algo de
segredo messiânico (16,20; 17,9), delineia a relação entre Jesus e a sua Igreja
(16,18); essa é convidada a “ensinar tudo o que Jesus havia ordenado” (28,20),
nos seus doutrinamentos, especialmente no sermão da montanha (Mt 5-7).
Nesse sentido, Lucas apresenta Jesus
rico em misericórdia e modelo para todo homem, mediante fatos cujo significado
revela uma história que tem o seu centro na vida do mestre e se expande na vida
da Igreja chamada a confrontar-se com os acontecimentos vividos por Jesus.
Como panorama geral Marcos apresenta
organicamente as tradições anteriores e tem como centro o mistério do “caminho”
de Jesus, a cruz reveladora do “segredo messiânico”. Já Mateus dá uma nova
direção ao material recebido de Marcos, apresenta-o em uma estrutura setenária
perfeita e ressalta a dimensão eclesiológica. Também Lucas acolhe quase todo o
material de Marcos. Ele se abre para o mundo inteiro, vê na vida de Jesus o
centro da história, que encontra sua extensão na vida da Igreja.
Podemos verificar abaixo quadro
comparativo dos evangelhos sinóticos:
|
Mt
|
Mc
|
Lc
|
Mt-Mc
|
Mt-Lc
|
Mc-Lc
|
Total de Versículos
|
1068
|
678
|
1150
|
175
|
235
|
50
|
Versículos comuns
|
330
|
330
|
330
|
0
|
0
|
0
|
Versículos exclusivos
|
315
|
70
|
520
|
0
|
0
|
0
|
O quadro a seguir apresenta as
estruturas de divisão dos temas nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas sendo
possível observar inequívoca relação sinótica existente entre eles. Os temas
que mais se destacam são: o reino, as parábolas, os milagres, o mistério pascal
nos momentos da morte e da ressurreição.
Estrutura
|
Marcos
|
Mateus
|
Lucas
|
História da Infância
|
|
1-2
|
1-2
|
Pré-História
Preparação da vida pública, batismo e tentação de
Jesus na Galileia
|
1,1 – 1,13
|
3,1 – 4,11
|
3,1 – 4,13
|
Primeira Seção
Atividade de Jesus na Galileia
|
1,14 – 6,13
|
4,12 – 13,58
|
4,14 – 9,50
6,20 – 8,3
|
Segunda Seção
Atividades de Jesus fora da Galileia
A.
1º anúncio da Paixão
B.
2º anuncio da Paixão
C.
3º anuncio da Paixão
|
6,14 – 10,52
8,13
9,31
10,33-34
|
14,1 – 20,34
16,21
17,22-23
20,17-19
|
9,51 – 19,27
9,22
9,44
9,51 – 18,27
18,31,33
|
Terceira Seção
Últimos dias em Jerusalém, Última Ceia e
Crucifixão
|
11-15
|
21-27
|
19,28 – 23,56
|
História Pascal
|
16
|
28
|
24
|
Da mesma forma podemos demonstrar (quadro abaixo) as semelhanças no estilo, linguagem e vocabulário capaz de roborar o entendimento de dependência dos textos:
Mt 9,6
|
Mc 2, 10-11
|
Lc 5,24
|
“Pois bem, para que saibais que o Filho do homem
tem na terra poder de perdoar os pecados – disse então ao paralítico:
Levanta-te, pega o teu leito e vai para casa”.
|
“Pois bem, para que saibais que o Filho do homem
tem na terra poder de perdoar os pecados – disse ao paralítico – eu te digo:
levanta-te, toma a tua maca e vai para casa.”
|
“Pois bem, para que saibais que o Filho do homem
tem na terra poder de perdoar os pecados – disse ao paralítico – eu te digo:
levanta-te, pega o teu leito e vai para casa.”
|
Outro exemplo,
para demonstrar a relação entre os evangelhos é o que acontece com o tema sobre
a autoridade de Jesus nos Evangelhos de Mateus e Lucas, a saber:
Mt 11,25-27
|
Lc 10, 21-22
|
Naquela ocasião, Jesus tomou a palavra e disse. “Eu
te louvo, Pai, Senhor do céu e da terram porque escondeste estas coisas aos
sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim
foi do seu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho
senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o
quiser revelar”.
|
Naquela mesma hora Jesus sentiu-se inundado de
alegria no Espírito Santo e disse: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da
terram porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste
aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi
entregue por meu Pai. Ninguém conhece quem é i Filho senão o Pai, e quem é o
Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.”
|
Com efeito,
temos que os sinóticos contemplam o Jesus terreno do ponto de observação da
Páscoa para comunica-lo ao leitor do seu tempo, convidado a voltar ao Jesus da
história tendo presente que ele é agora o Ressuscitado.
Por hoje é só. Até Breve com outro tema.
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