terça-feira, 25 de março de 2014

A Parábola da Teologia Fundamental

Parte II


            No presente trabalho vamos explorar um pouco o conceito da fé como conhecimento e saber, bem como a importância das idéias apologéticas, em especial de Blaise Pascal, na fundamentação de toda a esperança do homem no mistério do amor de Deus que se revela na morte do crucificado.
            A revelação não é apenas o eixo em torno do qual gira a teologia.
            Embora esteja no centro da reflexão teológica; é principalmente o seu fundamento, o seu princípio constitutivo. A partir desse princípio, a teologia desempenha uma tarefa de ser uma compreensão crítica da revelação e sua credibilidade, passando de uma teologia dogmática para uma teologia da revelação.
            Compete ainda à teologia fundamental, além de identificar as formas, conteúdos e metodologias da teologia, mostrar que existe uma forma de conhecimento que se exprime pela fé.
            A teologia descobriu a centralidade da revelação e deverá tomar impulso a partir desse evento para explicitar a relação que a liga a ele.
A partir dessa ótica, impende-nos explorar um pouco o conceito da fé como conhecimento e saber. A fé não é um sacrifício da inteligência, mas uma forma de conhecimento peculiar. Nesse contexto, o crer engloba duas dimensões: gnosiológica e comportamental.
            No Antigo Testamento, crer no Senhor equivalia a conhecer o Senhor e entregar-se. Confiar e obedecer àquele que se conhece, mesmo contra toda evidência. É o caso de Abraão que acredita que Sara conceberá apesar da idade avançada de ambos. No Novo Testamento não é diferente. Crer é conhecer Jesus e tornar-se seu seguidor, conformar a vida ao Evangelho, que leva à salvação.
A fé como conhecer e saber implica em dois temas: a relação com a verdade e a relação com a liberdade. No mundo cristão, a verdade é a revelação de Deus em um evento histórico, que mostra que Ele dirige o mundo e leva os homens em uma direção escatológica de um encontro definitivo. Inserir a verdade no tempo-história implica relacioná-la ao movimento passado-presente-futuro. Esse movimento comporta, também, uma dialética de manifestação-ocultação, até o momento escatológico.
Essa revelação tem como primeira expressão, no passado, o ato da criação, que atesta a grandiosidade e o amor de Deus e confirma a possibilidade de conhecimento. Estende-se entre a promessa e a realização. A verdade do presente, para os crentes, é o evento da Encarnação, que imprime a toda história a síntese da revelação possível de Deus. Essa verdade está ligada também ao futuro, na medida em que implica a total realização do Reino anunciado por Cristo e, com isso, o pleno conhecimento de Deus.
            A liberdade intervém plenamente no ato de crer e se exprime como a forma de decisão pessoal de quem se relacionou com a verdade da revelação. Quando se estabelece a conexão entre a verdade revelada e a liberdade do crente, emerge uma dimensão prática e ética de nosso viver, que leva à descoberta de uma dependência pessoal como a forma da própria realização.
            Como a revelação se dá na dialética de desvelamento e escondimento, exige que a escolha, mediante a qual ela é aceita e à qual a pessoa se entrega seja fruto de uma fé. É um conhecer que acarreta a escolha de uma obediência pessoal e confia o sentido da própria existência.
            Ao mesmo tempo em que evidencia a característica da teologia fundamental de tentar responder ao anseio que todo homem tem em saber qual é o sentido da existência, o autor salienta que a resposta é que o sentido da vida é o Evangelho de Jesus Cristo, que foi crido como palavra de salvação. Mas como levar essa mensagem a todos?
            Para tornar o Evangelho crível e aceitável ao homem contemporâneo, deve-se apresentar a vida de Jesus, que exprime seu amor pleno e total, que livremente o levou a se encarnar e entregar sua vida na cruz. Esse amor é sinal do amor de Deus e a forma que temos de conhecê-lo. Não é possível conhecer Deus, senão pelo caminho que ele mesmo construiu para ser conhecido. Uma vez percebido pelo homem, tal amor não pode ser colocado de lado, pois isso o levaria à insegurança e angústia profunda. “Na medida em que a reflexão teológico-fundamental estiver em condições de se expressar em uma nova linguagem, capaz de comunicar e de chamar a atenção da pessoa para o verdadeiro sentido da existência, ela terá alcançado o objetivo de sua razão de ser como reflexão sobre a fé que é capaz de interrogar-se e, ao mesmo tempo, incitar à reflexão” (p. 105).
            Nessa perspectiva, há alguns exemplos de apologias capazes de transmitir essa mensagem. No particular, merecem destaque as idéias concebidas por Blaise Pascal, que foi capaz de compreender o mistério de Deus e, em seu bojo, o mistério do homem, a saber:
“É a nossa religião que ensina aos homens estas duas verdades: que existe um Deus, para o qual os homens são aptos, e que existe na natureza uma corrupção que os torna indignos de si mesmos. Para os homens é igualmente importante conhecer um e outro destes dois pontos; e é igualmente prejudicial aos homens tanto conhecer a Deus sem conhecer a própria miséria como conhecer a própria miséria sem conhecer o redentor que poderá curá-los” (p. 106).
            Essa dialética miséria do homem/misericórdia de Deus aparece de várias formas em sua obra. Entretanto, ele afirma que, não obstante a sua miséria, o homem é grande e aquilo que o faz assim é sua capacidade de pensar. “O homem ultrapassa infinitamente o homem”. Pascal não era teólogo, era matemático, mas numa época marcada pela explosão do racionalismo, emergiu como ponto de contraste. Sua autocompreensão está ligada à descoberta de um Deus pessoal e o amor que ele experimenta nessa descoberta marcará o resto de sua vida, numa vivência do Evangelho de forma radical e simples. Via a relação com o cristianismo não como um conjunto de doutrinas, mas principalmente como um encontro com uma Pessoa.
            Para ele, o desejo mais profundo que o homem quer realizar é a busca da felicidade. Tudo que se faz não passa de espasmódica busca de felicidade. No entanto, sem a fé jamais alguém conseguiu chegar ao ponto para o qual todos tendem. Jesus Cristo é a verdadeira solução do enigma da condição humana. Nele todas as contradições são resolvidas e aquilo que era infelicidade, em Cristo é assumido para ser definitivamente superado.
            Deus, na sua visão, é o Deus escondido que passa pela cruz e pela morte para exprimir seu amor. O Deus escondido é aquele que está mais perto do homem e inquieta o coração (cor inquietum), colocando a condição de dever procurá-lo cada vez mais e levando a reconhecer o amor como o critério apto a explicar o grande mistério. Ele não tenta indicar o caminho a seguir, mas sim convencer da necessidade da procura.
            Desta forma, depreende-se que a busca do sentido da vida tornou-se dramática nos dias atuais. Mas nem por isso é capaz de, por si só, justificar as contradições que se observam na vida de cada indivíduo que, embora consciente de seu próprio valor, parece querer continuar na estrada da mediocridade, por se sentir incapaz de realizar uma escolha radical de vida. O homem é enganado por novos modelos de amor, que brotam apenas de um profundo egoísmo e não satisfaz.
            Diante do exposto, podemos dizer que considerar a fé cristã como um conhecer e um saber consiste em pensar a revelação como fundamento do próprio ato com o qual se crê. Consiste também em aderir à verdade revelada com a própria existência, colocando neste ato a inteligência (razão) e a vontade (liberdade). Além disso, a teologia fundamental possui a resposta ao grande anseio da humanidade, que é encontrar o sentido da vida e a felicidade. Na medida em que estiver em condições de expressar uma nova linguagem, capaz de chamar a atenção para essa verdade e comunicá-la, terá alcançado seu objetivo.
            
REFERÊNCIA:

FISICHELLA, RINO. Introdução à Teologia Fundamental, 2. ed. São Paulo: Loyola, 2006.

Até Breve com a parte Final. Boa leitura.

terça-feira, 18 de março de 2014

Teologia Fundamental

A PARÁBOLA DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL
Parte I

Com base na narrativa que consta do Livro dos Números e que continua no Livro do Deuteronômio, ambos do Antigo Testamento, acerca da caminhada do povo de Israel rumo à terra prometida tendo à frente o patriarca Moisés, são destacados pelo autor três importantes passos adotados:
a)    Primeiro: avaliar o período do deserto e as provas nele passadas;

b)  Segundo: considerar com seriedade as advertências agora transmitidas para que a posse da terra traga felicidade; e

c)    Terceiro: ter sempre na mente a memória do tempo passado.

Esta esquematização é fundamental para descrever a parábola da Teologia Fundamental segundo a qual ao depararmo-nos com o momento mais crítico e difícil, somos levados a esquecer do período de “deserto” e correr para a “terra prometida” sem nos darmos conta da necessidade de uma adequada preparação. Esta preparação está relacionada com o “recenseamento” de todo instrumental herdado do tempo da necessária reflexão para purificação e a conversão, que nos precedeu ao período do “deserto”.
Releva notar que, da época do deserto, brota o ensinamento de que a excessiva ênfase na argumentação racional faz perder o sentido do mistério que tem necessidade, primariamente, de exprimir-se por si. Assim, não se deve esquecer que nossos dias caracterizam-se hoje por uma quase espasmódica busca de sentido autêntico da existência unida, contraditoriamente, a uma forte indiferença e a tibieza.  
Neste sentido, temos o fato de que a memória histórica permite-nos saber que existe um patrimônio eclesial, histórico e cultural, por toda a tradição teológica e por sua história, que não se pode desprezar sob pena de que não sabermos como nos orientar. O período histórico em questão se identifica, praticamente, com a teologia escolástica[1] e seu momento áureo se dá com a publicação, em 1879, da encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII,  onde se destaca que o cerne da questão  está, mais uma vez, na relação entre fé e razão, que encontrara no período da Idade Média sua síntese orgânica. Assim, a filosofia se relaciona com a fé e a teologia por uma tríplice passagem relacionada aos momentos constitutivos do ato de fé. Antes do ato de fé, a filosofia prepara os ânimos para receber e acolher a revelação. O uso da filosofia é exigido para que a teologia possua a natureza, a forma e característica de uma verdadeira ciência.
Desta forma, a teologia detinha traços eclesiocêntricos e trazia consigo a observância de três autoridades: Escritura, Tradição e Magistério. Mas o seu verdadeiro centro foi a assunção da teologia do Magistério, que se torna, por isso mesmo fiadora da produção teológica por força do próprio carisma de infalibilidade e pela ausência de metodologia para o uso das duas outras fontes. A teologia tornou-se, então, uma coleção de textos do Magistério e o Denzinger foi assumido como modelo normativo. A partir dessas premissas gerais foram criadas as condições para estruturar-se a teologia fundamental, como base no modo apologético, com peculiaridades de gênero “manual” e de um método puramente defensivo.
A tripartição em uso no tratado, por si só de origens mais remotas, tinha o objetivo de apresentar a globalidade da revelação cristã à luz de três categorias que reportavam a três destinatários diferentes, a saber:
a)  A demonstratio religiosa: versava sobre a demonstração do valor objetivo da religião e sobre a necessidade para cada um crer e o destinatário é o ateu. Devia-se mostrar a ele o “De vera religione”;
b)    A demonstratio christiana: versava sobre o valor salvífico do cristianismo e sobre sua superioridade diante de outras religiões. O tratado era desenvolvido por meio da análise dos “títulos cristológicos”. Dirigia-se esta demonstração especialmente aos não cristãos.
c)    A demonstratio catholica: Dirigia-se a não católicos para mostrar não só que a única Igreja desejada por Cristo era a católica, mas também que para se conseguir a salvação era necessário o ingresso nessa Igreja.
Dai surgiram três tipos de demonstrações – via histórica, via notarum e via empírica – que constituíram a estrutura de sustentação e de conteúdo da apologética. A  teologia dos manuais abraçou o método dedutivo, presente, sobretudo, na linguagem onde são empregados termos típicos desse método, tais como: “demonstrar” e “provar”. Em face dessa característica os métodos “imanência”, “histórico”, ou “exegético-hermenêutico” não encontraram ressonância nesta teologia.
Essa trilha levou a uma “justaposição” entre a fé e a razão que, mesmo sobre um mesmo teto, jamais se encontrariam. Repetia-se aquilo que o Vaticano I sancionara: a razão chega a verdades “naturais”, mas somente a fé abre o caminho para as sobrenaturais, tornando estranhas uma à outra com a instrumentalização da filosofia e uma definição redutiva da teologia. Tal situação implicou em um crescente fosso entre a sociedade e a teologia já que a apologética punha como destaque de toda a sua força demonstrativa a evidência dos sinais da revelação, mas eles, de qualquer forma, eram argumentações externas para a confirmação do fato da revelação. Entre o “fato” e o “senso” da revelação criava-se uma fratura insustentável. Tem-se a impressão, estudando os manuais de apologética, de que se fala de Cristo prescindindo dele. No entanto, a teologia dos manuais teve méritos ao ter sido profundamente interpelada pelas sugestões de seus contemporâneos e não ter deixado escapar a oportunidade de conhecer e saber avaliar as exigências apresentadas. Além disso, em um período de forte fragmentação e incerteza cultural, ela soube representar uma unidade de fundo e em qualquer lugar do mundo era possível encontrar a mesma linguagem.
A renovação da teologia fundamental a partir do Concílio Vaticano II não é apenas uma questão de imagem, mas também de conteúdo, de métodos e de destinatários. Considera-se a constituição Dei Vebum, a magna carta dessa renovação e a força motriz de uma evolução teológica que se estende até os nossos dias. Sem ela, a teologia fundamental não teria jamais podido conseguir a renovação que auspiciava a si mesma, e a própria teologia não teria podido conseguir os resultados que estão ao alcance de todos. Uma palavra-chave poderia facilmente exprimir o movimento teológico desencadeado pelo Concílio: redescoberta.
Essa redescoberta se deu em diversas dimensões, a saber:

Redescoberta da pessoa de Cristo
Jesus Cristo mostra com clareza a inteireza de sua pessoa que se encontra na identidade entre o ser Revelador do Pai e sua definitiva Revelação.
Redescoberta da Igreja “ministro” da Palavra
É a vida da comunidade. Os leigos são reconhecidos, como também os carismas e ministérios. A Igreja se apresenta como mediação da Revelação e transmite fielmente o anúncio de salvação. Adquire a autoconsciência de uma Igreja que necessita de conversão permanente. É santa e pecadora.
Redescoberta do destinatário da revelação
O sujeito a quem a revelação é endereçada e o seu objetivo último: a salvação da humanidade. Recupera-se uma das peculiaridades da teologia fundamental: a de ser um lugar de encontro com todos. Destaca-se a gratuidade com a qual Deus faz conhecer o mistério de sua vida.
Redescoberta das Escrituras
A Palavra de Deus voltou a instruir gerações de crentes que, com algum esforço, conseguem compreender a riqueza ao alcance de suas mãos.

O contexto histórico-cultural em que se desenvolve é o que chamamos de modernidade. Há o predomínio da razão e as diversas formas de ateísmo que daí derivam. A religião conflui progressivamente para a filosofia e esta se torna o critério último de toda forma de saber. Impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, o homem se acha autossuficiente e torna-se o centro do cosmo. Os filósofos sentem-se à vontade para colocar em dúvida a existência de Deus.
Nesse contexto a necessidade da teologia fundamental é urgente e se reflete em algumas situações:
a)    O crente precisa saber dar a razão da sua fé.
b)    Necessidade que o homem tem de dar sentido à sua existência.
c)    Necessidade de fundação de uma pastoral global, que promova o diálogo entre a teologia e a ação pastoral.
Na tentativa de se definir a identidade da teologia fundamental, reconhece-se que ela não é um dado completamente adquirido, mas apresenta-se como:
a)    Ciência que estuda o evento da revelação e sua credibilidade.
b)    Disciplina que constitui a função do saber teológico em seu fundar-se a respeito de outras ciências.
c)    Introdução ao mistério de Cristo.
       A teologia fundamental é a consciência da necessidade de dar uma resposta de esperança da fé ao homem pós-moderno, expressa em 1Pd, 3,15: “Estai sempre dispostos a justificar vossa esperança perante aqueles que dela vos pedem conta.”
Com efeito, ficou devidamente evidenciado que o retrato da Teologia Fundamental de hoje é fruto de uma longa caminhada e que a evolução culminou em um avanço de conteúdo, de método e de destinatários. Tratava-se de uma teologia dos manuais focada unicamente no Magistério, que se utilizava da apologética, era eclesiocêntrica e tinha como destinatários os ateus, os não cristãos e os cristãos. 
Evoluiu-se para uma teologia Cristocêntrica efetivamente baseada na Tradição, no Magistério, e com maior destaque, nas Sagradas Escrituras com uma apresentação positiva do ensinamento da Igreja, baseando-se no diálogo e no ecumenismo, tendo como destinatários todo homem, numa visão de amor e que tem buscado incessantemente vencer os desafios de resgatar e conferir dignidade a todos os homens e mulheres de um mundo que se diz pós-moderno, mas que, pelos comportamentos e atitudes, parece ter voltado ao tempo das cavernas pré-históricas.

Referência:
FISICHELLA, RINO. Introdução à Teologia Fundamental, 3. ed. São Paulo: Loyola, 2011.



[1] Conhecida como teologia dos manuais


segunda-feira, 17 de março de 2014

Os Sinóticos

A Questão dos Evangelhos Sinóticos
Parte Final

Os três evangelhos têm em comum 330 versículos. Isso não quer dizer que esses textos em comum sejam exatamente iguais nos três evangelhos. Para ilustrar esta questão podemos citar o texto que fala da recompensa dada aos que deixam tudo para seguir a Jesus que se encontra nos três evangelhos, a saber: Mc 10,28-31; Mt 19,27-30 e Lc 18,28-30.

À primeira vista, os três dizem a mesma coisa. Todavia, olhando de perto tais textos, podemos descobrir características próprias de cada evangelho. Assim, Marcos é o único a falar das perseguições que acompanham a recompensa; somente Lucas fala de pessoas que deixaram a mulher. Diferenças como tais são encontradas em outras partes dos três evangelhos.

Uma das teorias levantadas para explicar tais diferenças, diz respeito à cronologia em que os textos foram elaborados. Sendo Marcos o evangelho mais antigo, é normal pensar que Mateus e Lucas usaram de liberdade e criatividade essa fonte. Mas isso nos permite constatar que os evangelhos não são reportagens sobre Jesus. Os que gostariam que ele tivesse dito exatamente aquilo que está nos evangelhos reagem com certa perplexidade. Para pergunta de quem foi o avô paterno de Jesus, Marcos nada diz. Mas Lucas diz que foi Eli, pai de José (Lc 3,23) e Mateus, ao contrário, afirma que o pai de José se chamava Jacó (Mt 1,15b-16a). Como superar esse impasse? Somente estando a par das intenções de cada um dos evangelistas é que conseguiremos superar a dificuldade à primeira vista intransponível. É há muitos casos assim nos evangelhos.

Cada evangelista apresenta um rosto próprio de Jesus e de sua mensagem. O Jesus apresentado por um evangelista não é exatamente o mesmo que podemos encontrar em outro evangelho. Porque cada um escolheu o que mais convinha às suas comunidades.

Os sinóticos, de maneira concorde, apresentam o material recebido pela tradição em um esboço geográfico que distribui a atividade de Jesus na Galileia, na Samaria e em Jerusalém. Marcos destaca o ministério de Jesus na Galileia, ministério ao qual dedica a metade do seu evangelho (1,16-8,26), enquanto Mateus lhe dedica pouco mais de um terço (4,12-13,58) e Lucas pouco mais de um sexto (4,14-9,50). O terceiro evangelista, por sua vez, destina grande espaço ao período central, à viagem da Samaria e Jerusalém, durante a qual recolhe material diverso (9,51-19,28), restrito em Mateus (14,1-20,34), ainda mais breve em Marcos (8,27-10,52). Mateus frisa a narração dos acontecimentos em Jerusalém e desenvolve a parte introdutória (1,1-4,11), concordando com Lucas (1,1-4,13): ambos dão ênfase que à infância de Jesus quer à narração da ressurreição. Marcos apenas faz aceno a esta (16,1-8) e ignora a infância.

No particular, é importante entender a intenção do narrador e o destinatário de sua obra. Marcos está interessado em uma visão cristológica. Pretende apresentar o mistério de Jesus, desvelado e, ao mesmo tempo, velado pelo poder das obras e pela impotência da paixão, em duas modalidades diferentes e complementares. De seu ponto de vista, Jesus é reconhecido “Filho de Deus” do início (1,1) ao fim (15,39). Por isso a incompreensão dos discípulos (6,52; 9,32) e as proibições de revelar a sua identidade (segredo messiânico: 8,30; 9,9), como o estado de cegueira (10,46-52) pertencem ao passado. Agora é urgente proclamar o evangelho para todos (13,9-11), exprimir a profissão de fé na Messianidade (8,27-29) e divindade de Jesus (9,7). O cristão, a quem o evangelho se destina, tem necessidade por sua vez de percorrer de novo o caminho da incompreensão à inteligência, da cegueira à luz, seja porque apenas uma leitura repetida da narração lhe permite penetrar profundamente no mistério inexaurível do homem-Deus, seja porque é convidado a proclamá-lo perante os outros.

Nesse sentido, o evangelho de Marcos, primeiramente dirigido para quem já experimentou em si a força da paixão, é adequado também para o pagão, exortado, no final, como o centurião sob a cruz, a expressar o ato de fé e a recomeçar a leitura desde o início. Parte-se do Jesus conhecido como ressuscitado para atingir a comunidade. O destinatário da mensagem é convidado pela experiência de fé a voltar a Jesus, percorrendo de movo as etapas (caminho) da sua revelação.

Por seu turno, Mateus proclama Jesus Senhor e mestre e o considera principalmente em uma perspectiva comunitária. Mateus retira a ignorância e a cegueira dos discípulos, conserva algo de segredo messiânico (16,20; 17,9), delineia a relação entre Jesus e a sua Igreja (16,18); essa é convidada a “ensinar tudo o que Jesus havia ordenado” (28,20), nos seus doutrinamentos, especialmente no sermão da montanha (Mt 5-7).
Nesse sentido, Lucas apresenta Jesus rico em misericórdia e modelo para todo homem, mediante fatos cujo significado revela uma história que tem o seu centro na vida do mestre e se expande na vida da Igreja chamada a confrontar-se com os acontecimentos vividos por Jesus.

Como panorama geral Marcos apresenta organicamente as tradições anteriores e tem como centro o mistério do “caminho” de Jesus, a cruz reveladora do “segredo messiânico”. Já Mateus dá uma nova direção ao material recebido de Marcos, apresenta-o em uma estrutura setenária perfeita e ressalta a dimensão eclesiológica. Também Lucas acolhe quase todo o material de Marcos. Ele se abre para o mundo inteiro, vê na vida de Jesus o centro da história, que encontra sua extensão na vida da Igreja.

Podemos verificar abaixo quadro comparativo dos evangelhos sinóticos:


Mt
Mc
Lc
Mt-Mc
Mt-Lc
Mc-Lc
Total de Versículos
1068
678
1150
175
235
50
Versículos comuns
330
330
330
0
0
0
Versículos exclusivos
315
70
520
0
0
0

O quadro a seguir apresenta as estruturas de divisão dos temas nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas sendo possível observar inequívoca relação sinótica existente entre eles. Os temas que mais se destacam são: o reino, as parábolas, os milagres, o mistério pascal nos momentos da morte e da ressurreição.

Estrutura
Marcos
Mateus
Lucas
História da Infância

1-2
1-2
Pré-História
Preparação da vida pública, batismo e tentação de Jesus na Galileia


1,1 – 1,13


3,1 – 4,11


3,1 – 4,13
Primeira Seção
Atividade de Jesus na Galileia
1,14 – 6,13
4,12 – 13,58
4,14 – 9,50
6,20 – 8,3
Segunda Seção
Atividades de Jesus fora da Galileia

      A.      1º anúncio da Paixão
      B.      2º anuncio da Paixão
      C.      3º anuncio da Paixão

6,14 – 10,52


8,13

9,31

10,33-34

14,1 – 20,34


16,21

17,22-23

20,17-19




9,51 – 19,27


9,22

9,44
9,51 – 18,27
18,31,33
Terceira Seção
Últimos dias em Jerusalém, Última Ceia e Crucifixão

11-15

21-27

19,28 – 23,56
História Pascal
16
28
24

    Da mesma forma podemos demonstrar (quadro abaixo) as semelhanças no estilo, linguagem e vocabulário capaz de roborar o entendimento de dependência dos textos:

Mt 9,6
Mc 2, 10-11
Lc 5,24
“Pois bem, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder de perdoar os pecados – disse então ao paralítico: Levanta-te, pega o teu leito e vai para casa”.
“Pois bem, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder de perdoar os pecados – disse ao paralítico – eu te digo: levanta-te, toma a tua maca e vai para casa.”
“Pois bem, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder de perdoar os pecados – disse ao paralítico – eu te digo: levanta-te, pega o teu leito e vai para casa.”


Outro exemplo, para demonstrar a relação entre os evangelhos é o que acontece com o tema sobre a autoridade de Jesus nos Evangelhos de Mateus e Lucas, a saber:

Mt 11,25-27
Lc 10, 21-22
Naquela ocasião, Jesus tomou a palavra e disse. “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terram porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do seu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
Naquela mesma hora Jesus sentiu-se inundado de alegria no Espírito Santo e disse: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terram porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece quem é i Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.”

 

Com efeito, temos que os sinóticos contemplam o Jesus terreno do ponto de observação da Páscoa para comunica-lo ao leitor do seu tempo, convidado a voltar ao Jesus da história tendo presente que ele é agora o Ressuscitado.

Por hoje é só. Até Breve com outro tema.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Sinóticos - continuação (Parte II)

A Questão dos Evangelhos Sinóticos
Parte II


Se há concordância quase geral em postular documentos escritos, há um desacordo entre os exegetas sobre o tipo de hipótese proposta. 

A hipótese mais provável, capaz de oferecer uma explicação satisfatória, continua sendo a teoria das duas fontes, que prevaleceu no século passado e ainda é compartilhada pela maioria dos estudiosos. São necessárias, mas ao mesmo tempo também suficientes, como fontes Mc e Q (Quelle). Os sinóticos estão em dependência entre si.

Vale realçar que a primeira redação do Evangelho ocorreu por volta do ano 50 e se deu por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para os evangelhos de Marcos, escrito entre os anos de 65 e 70, e de Lucas, escrito no ano 75, que utilizaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais. 

O texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém caiu em 70. Desta forma, o tradutor, desconhecido de nós, retocou e ampliou o texto aramaico servindo-se de Marcos – ano 65/70. Isto quer dizer que o texto grego de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico, e, segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos.

Desta forma, consideramos que o Evangelho segundo São Marcos foi o primeiro a ser escrito. A quantidade de palavras encontradas nele não ultrapassa as que se contam em um jornal diário. “Trata-se de um texto eloquente, vivo e ágil, que relata os últimos anos de vida de Jesus e começa com uma inscrição simples: Início do evangelho de Jesus Cristo, o filho de Deus” (BLAINEY, 2012). 

A primeira história trata da sensação causada por João Batista, quando começou a batizar pessoas aos milhares, e a última descreve o momento em que três mulheres descobrem, ao encontrar o túmulo vazio, que Jesus ressuscitou. “As três mulheres nada disseram a ninguém, porque sentiam medo”. Essas foram as últimas palavras de Marcos; assim ele terminou, com um ar de mistério, deixando sem resposta questões vitais.

O Evangelho de Marcos exerceu forte influência sobre o Evangelho de Mateus. Este possuía tantos méritos literários, tanta clareza e segurança, que se tornou o evangelho mais conhecido, e era o mais lido nas igrejas.  Lucas, que escreveu o terceiro Evangelho, não foi amigo pessoal de Jesus e, de acordo com alguns historiadores, não era judeu. Provavelmente médico, e com certeza amigo de Paulo, com frequência demonstrava simpatia por suas ideias, por vezes diferentes das ideias da maioria. Lucas começa sua história com a afirmativa de que “assistiu de perto aos acontecimentos” e vai dizer a verdade.


Assim, temos que são considerados sinóticos os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. Sinótico advém da palavra “sinopse” [1]. Esses evangelhos são chamados assim graças ao trabalho de GRIESBACH[2] que, em 1776, dispôs os três primeiros evangelhos em três colunas paralelas de modo a ter uma visão dos três textos ao mesmo tempo.  A questão sinótica consiste em explicar as concordâncias e discordâncias existentes entre os três evangelhos, a interdependência existente entre os três documentos e a precedência de um texto sobre os outros.


[1] Synopsis – visão de conjunto
[2] J.J. Griesbach: pesquisador alemão em sua obra Synopsis evangeliorum, publicada em Halle, 1776.

Retornaremos em Breve com a parte III. Até lá.!

quarta-feira, 12 de março de 2014

Os Sinóticos

A Questão dos Evangelhos Sinóticos
Parte I

O mais antigo registro conhecido feito por um dos primeiros cristãos é uma carta, de poucas linhas, escrita por Paulo: a primeira epístola aos tessalônios. 

O manuscrito foi encontrado cerca de vinte anos depois da morte de Cristo. Nos cinquenta anos seguintes foram elaborados vários evangelhos, grandes e pequenos, contendo detalhes infinitamente mais numerosos do que Paulo conseguiu transmitir.

A Igreja reconhece quatro narrações do Evangelho[1] ou quatro Evangelhos canônicos: os de Mateus, Marcos, Lucas e João. Destes, os três primeiros são chamados “sinóticos” porque podem ser lidos em sinopse ou em três colunas paralelas. No presente trabalho iremos tratar das questões e particularidades que envolvem os Evangelhos ditos sinóticos.

Cabe salientar que após três séculos da Morte de Jesus Cristo, ainda não se sabia quais evangelhos, memórias, epístolas e histórias podiam ser considerados os mais verdadeiros. Embora os evangelhos se destacassem, outros trabalhos foram acrescentados, um a um, e as fontes de controvérsias eliminadas. Roma e Constantinopla eram então os principais centros da igreja cristã. 

Por volta do ano 400, afinal, chegou-se a um acordo quanto ao que seria o Novo Testamento. Mais ou menos na mesma época, São Jerônimo traduzia para o latim os livros do Antigo e do Novo Testamento, mas a Bíblia resultante – a Vulgata – só foi reunida em um único volume no século sexto.

Outra particularidade é que os Evangelhos são simbolizados pelos animais descritos em Ez 1,10 e Ap 4,6-8: o leão (Marcos), o vitelo (Lucas), o homem (Mateus) e águia (João). A tradição cristã adaptou esses símbolos aos autores sagrados levando em conta o início de cada Evangelho, a saber:

·         Mateus: começa apresentando a genealogia de Jesus é simbolizado pelo homem;
·         Marcos: tem início com João Batista no deserto que é tido como local da morada do leão; e
·         Lucas: abre com Zacarias a sacrificar no templo e é por isso que é simbolizado pelo vitelo, vítima do sacrifício.

Ao propagar-se, a mensagem foi tomando formas literárias diversas, com a da catequese sistemática, a da oração litúrgica a da apologética (destinada a provar a Divindade e a Messianidade de Jesus), a da controvérsia (destinada a desfazer dúvida dos ouvintes), dentre outras maneiras. À medida que iam pregando o Evangelho, os Apóstolos experimentavam a necessidade de consignar por escrito ao menos algumas partes do mesmo, a fim de facilitar a aprendizagem dos discípulos.

Como a arte de escrever fosse rara, difícil na antiguidade, a escrita era esporádica: escreviam-se séries de parábolas, de milagres de profecias, de ensinamentos, as narrativas da Paixão e Ressurreição com fins estritamente didáticos, ou seja, para promover a transmissão das verdades da fé.

Aos poucos, as comunidades cristãs perceberam a vantagem de compilar num só todo sistemático esses fragmentos da pregação evangélica. Como mencionado acima, das diversas compilações assim feitas, a Igreja reconheceu quatro como canônicas, ou seja, como autêntica Palavra de Deus.

Até Breve com a segunda Parte.