terça-feira, 21 de março de 2017

Parte I - A Fé e a Razão


                           




                 
            O que um economista e sociólogo de formação poderia sugerir a um teólogo para facilitar o diálogo fé-economia?  Há, na história da humanidade, momentos de especial significado, quando são tomadas decisões que vão marcar e condicionar a evolução futura e ocorrem fatos destinados a repercutir intensamente e duradouramente, na vida das pessoas. São pontos de inflexão, a indicar mudanças essenciais que, uma vez consumadas, permitirão afirmar-se que a história não será mais a mesma.
            Hoje vivemos um momento particular, quer do ponto de vista da fé, quer do ponto de vista da razão. No campo econômico podem-se observar mudanças profundas no que toca à política e às transformações que se operam no tecido social, com significativos reflexos no âmbito da moral e da fé católica. Vive o mundo um período de grandes mudanças, com reivindicações crescentes da sociedade, em seus vários segmentos, para a conformação de um mundo de paz, mais justo e solidário socialmente.         Por tudo isso, este trabalho se faz tanto mais oportuno quanto é patente a necessidade de compreender a característica de cada época da história do pensamento econômico e seu impacto na vivência da moral e da fé católica.  Coloca-se para nós a seguinte indagação: Qual a finalidade de um sistema econômico? O homem dispõe dos recursos da natureza e de suas próprias forças – tanto isoladamente como, sobretudo, em colaboração com os outros homens – para alcançar seus fins.
            Mas, sabe-se que os recursos disponíveis – terra (recursos naturais), trabalho, capital, tecnologia, informação, tempo – são escassos, e para enfrentar este problema é necessária uma atividade racional (economia) de administração desses recursos, que auxilie o ser humano na obtenção de seus objetivos.  Portanto, é correto ou não afirmar que o fim último de um sistema econômico é o fim mesmo da própria humanidade? No particular, acreditamos que tanto a racionalidade econômica quanto a doutrina católica irão nos ajudar a responder esta fundamental indagação. O próprio envolvimento da Igreja, como perita em humanidade[1], assumiu nos últimos dois séculos uma nova feição exigente, conciliadora e mais presente diante da dinâmica da economia. Isso exigiu um grande esforço do Magistério da Igreja Católica na elaboração de documentos, traduzidos em exortações e cartas encíclicas, que serviram para formar uma doutrina específica no campo social, da qual cuidaremos de analisar neste trabalho.
Outro aspecto importante e que vamos reportar neste trabalho é a proximidade entre a economia e o poder. Os governos instituídos tiveram o pensamento econômico vigente sempre próximo de sua tutela. Aconteceu na Inglaterra da revolução industrial, principal potência econômica dos séculos XVII e XVIII, onde, não por coincidência, floresceu a economia clássica.  Não é à toa, também, que a Rússia, na implementação da revolução do proletariado, toma para si os pensamentos socialistas de Karl Heinrich Marx (1818-1883) [2] para contrapor ao liberalismo dos ingleses Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823) e John Stuart Mill (1806-1873).
     Desta forma, buscaremos fazer uma exposição sistemática e cronológica, que se inicia com o estudo do pensamento econômico da antiguidade e da Idade Média, passando pelas correntes Mercantilistas da Renascença, pela tradição liberal-individualista do Século XVII e pelas reações do socialismo desenvolvidas no século XIX, até chegar às manifestações mais recentes, representadas pelos pressupostos doutrinários do intervencionismo, cujo expoente, nas economias ocidentais, foi John Maynard Keynes (1883-1946).
       Na sequência iremos discorrer sobre o enfretamento das graves distorções no mercado econômico utilizando dos ensinamentos deixados pela pessoa e missão de Jesus Cristo e buscaremos, ainda, unir a narração dos acontecimentos à análise positiva do comportamento cristão nas diversas épocas focalizadas. Isto possibilita demonstrar a interdependência existente entre o comportamento cristão e a superação dos principais problemas socioeconômicos da história. Merece especial destaque no presente trabalho a atuação do Magistério da Igreja que, a partir da publicação da Carta Encíclica Rerum Novarun -- a chamada “Carta Magna do Operariado” – resgatou a primazia da Igreja como verdadeira perita em humanidade.
            Neste particular, levou-se em consideração o contexto histórico de cada momento em que foram elaborados os documentos da Igreja, ao mesmo tempo em que se confrontou o conjunto das idéias ali defendidas com a realidade atual da sociedade, para mostrar a vitalidade com que a Igreja Católica atuou em uma parcela concreta de entraves sociais ao longo desses dois últimos séculos. Essa vitalidade manifesta-se em uma incansável atitude de busca em que momentos de luz mesclam-se a momentos de escuridão e de dúvida, como descrevemos neste trabalho.
            Por isso, não se pretende ficar apenas no nível do exame e discussão de doutrinas[3].  As pesquisas literárias e as análises aqui efetuadas buscam revelar a realidade triste ou alegre da vida que palpita sob a reflexão e as formulações doutrinais econômicas e católicas.  Disso, resulta um panorama ampliado onde se pode observar a forma mais pastoral de entender o papel da hierarquia da Igreja Católica e que a sua dimensão exclusivamente docente passa a integrar uma função mais extensa de animação do próprio povo de Deus.
    A metodologia empregada, qual seja, a da pesquisa teórica, permite que a análise dos contrastes entre os princípios da fé católica e as diversas correntes do pensamento econômico reforce o significado e a importância do testemunho pessoal do católico no sentido de conduzir ações em perfeita aderência ao “ser imagem e semelhança de Deus” e de demonstrar que “não há oposição entre o mundo que devemos construir e Deus que devemos amar” (BOFF, 1998, p.43). Verificamos que é plenamente exequível interagir com a realidade social e modificá-la positivamente com a adoção de atitudes cristãs, da qual se nutre a própria tradição eclesial. O Vaticano II tem, igualmente, um papel decisivo no presente estudo, sobretudo para a interpretação de todo o processo dinâmico da nova atitude oficial da Igreja perante o homem moderno.
            Cabe aqui um registro: não pretendo apresentar um elenco completo dos documentos e, menos ainda, uma análise exaustiva de seu conteúdo e ambiente histórico em que se situam. A minha intenção é mais modesta: oferecer um esboço da evolução socioeconômica a partir do exame dos principais documentos do Magistério petrino e subsidiar a todos os interessados em conhecer melhor o firme testemunho de amor e dedicação da Igreja pela humanidade, conforme o alerta de Jesus Cristo, seu amado fundador:
Que o injusto cometa ainda a injustiça e o sujo continue a sujar-se; que o justo pratique ainda a justiça e que o santo continue a santificar-se. Eis que eu venho em breve, e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme o seu trabalho. Eu sou o Alfa e Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim. Felizes os que lavam suas vestes para terem poder sobre a árvore da Vida e para entrarem na Cidade pelas portas. Ficarão de fora os cães, os mágicos, os impudicos, os homicidas, os idólatras e todos os que amam ou praticam a mentira (Ap 22,11-15).






[1] A Igreja, “perita em humanidade”, é uma nomenclatura que já se tornou um patrimônio da linguagem eclesial e eclesiástica, e a sua fonte é a Carta Encíclica do Papa Paulo VI – Populorum Progressio (sobre o Desenvolvimento dos Povos de 26.03.67, nº. 13) e repetida incontáveis vezes em outros documentos do Magistério e quer significar, em função da sua missão, todo o empenho de se por à serviço de cada homem e do mundo inteiro (JOÃO PAULO II, VS, 2006, n. 3, p 8).
[2] Filósofo alemão do século XIX.
[3] Uma doutrina econômica constitui, a um só tempo, um projeto de organização econômica de dada sociedade e uma interpretação da atividade econômica de dada época. A ciência visa à explicação dos fenômenos econômicos. A doutrina contém os elementos da política econômica escolhida para realizar a organização desejada.


A Racionalidade Econômica no Contexto da Fé Católica


“Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça, nem o caruncho corroem e onde os ladrões não arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração” (Mt  6,19-21).
Jesus Cristo


Muitos cientistas sociais, inclusive os economistas, simplesmente desprezam ou até mesmo desconhecem a importância da teologia na formação do pensamento econômico e na avaliação de ações que visam a criação de um bem-estar social baseado no humanismo integral e solidário.
Este mesmo problema ocorre em relação ao teólogo que desconhece totalmente ou em parte o modus operandi da economia de mercado e somente lhe atribui comportamentos especulativos e manipulativos, semelhantes a uma sala de jogos de azar.
Desta forma, estarei apresentando nas próximas publicações (pretendo fazer tudo este ano) o resultado de um amplo e profundo levantamento por mim realizado de postulados teóricos, históricos e práticos da ciência econômica e da Doutrina Social da Igreja (DSI) para facilitar e possibilitar a aproximação entre a racionalidade econômica e os valores e critérios morais presentes na fé católica, que devem nortear as atividades econômicas para favorecer um permanente e duradouro ambiente de justiça e paz na sociedade humana.
Gostaria de contar com sua paciência pois eu e você, discípulos e missionários de Jesus Cristo,  teremos uma longa jornada para cumprir o mandato que o Senhor nos deu: Ide e evangelizai.
Quem tem ouvidos que ouça !!

Obrigado.