A Mensagem do Livro de Jó
A Palavra de Deus transcende qualquer conhecimento que
o intelecto humano seja capaz de produzir e somente é possível compreendê-la à
luz dos mistérios da fé, cujas nuances nos servirão de sustentáculo para a realização
do presente trabalho que tem o objetivo de analisar o
problema concreto de um homem e seu destino narrado no Livro de Jó das Sagradas
Escrituras.
A personagem
bíblica Jó nos é apresentada como um homem de fé, “íntegro, correto, temente a
Deus” (Jó 1,1) e que não se conformou com respostas prontas e não se contentou
com o que os outros lhe disseram e saiu em busca de soluções para os problemas
que afligiam sua vida.
A história desse homem mostra sua piedade, riqueza, fama e estima
perante a sociedade (Jó 1,2-5). Deus permitiu a Satanás prová-lo para ver se
ele continuaria fiel no infortúnio. Ferido primeiro nos seus bens e nos seus
filhos, Jó aceita que Deus retome o que lhe havia dado. Atormentado em sua
carne por doença repugnante e dolorosa, Jó se mantém conformado e censura sua
mulher que o aconselha a amaldiçoar Deus. Então três amigos seus chegam para
compadecer-se dele. Jó e seus amigos contrapõem suas concepções da justiça
divina. Depois de tanto sofrimento, Iahweh censura os três interlocutores de Jó
e o próprio Jó reconhece sua incapacidade de julgar Deus que, em razão do
comportamento de Jó, restituiu-lhe a saúde, os bens materiais e os filhos e
filhas.
Feito este pequeno resumo, podemos seguir em nossas
análises que apontam para o fato de que o autor do livro quer nos levar a
refletir sobre uma pergunta difícil de ser respondida: Por que o sofrimento? Mas,
além do sofrimento, somos instigados a revisar nossos conceitos sobre religião.
Existe religião gratuita, ou ela é sempre um comércio interesseiro? Religião é
uma relação que nasce do conhecimento intelectual de Deus ou uma relação que
nasce da experiência vivencial de Deus? Como podemos perceber o livro de Jó
traz questionamentos sérios e muito atuais.
A temática do sofrimento do homem reto está ligada a
uma antiga tese israelita de que todo o sofrimento é castigo dos pecados do
indivíduo, ao passo que a vida longa, saúde, dinheiro, boa fama seriam o prêmio
dado pelo Senhor aos seus fiéis seguidores. Ora, Jó não pecou. O próprio Deus
reconhece que na “terra não existe nenhum outro como ele: é um homem íntegro e
reto, que teme a Deus e evita o mal” (Jó 1,8). Se não vem de Deus, de onde vem
o sofrimento de Jó? Essa é a questão que atravessa todo o livro.
A mulher de Jó e seus amigos – Elifaz, Baldad e Sofar
(e mais tarde Eliú) – tentam convencê-lo de ter pecado contra Deus. Quase todo
livro é uma luta entre o preconceito dos amigos e a inocência de Jó. Ele quer
disputar com Deus cara a cara. No fim, Deus fala com ele. E Jó descobre um
rosto diferente de Deus. Encontrou-o presente em seu sofrimento, na sua dor e
marginalizado.
Esta concepção se impunha aos judeus pelo fato de que ignoravam a
existência de uma vida póstuma consciente; julgavam que, após a morte, o
indivíduo perdia a lucidez da mente e se encontraria adormecido no cheol, incapaz
de receber alguma sanção. Por isto admitiam a retribuição do bem e do mal nesta
vida mesma. Eis, porém, que, com o decorrer do tempo, esta concepção se
evidenciou discutível: na verdade, nem sempre os bons são recompensados pelo
Senhor com os favores desta vida e nem sempre os maus são punidos com doença e
miséria.
Como se vê, Deus não confirma a tese antiga, que explicaria o sofrimento
como castigo de pecados pessoais, mas também não expõe o sentido do sofrimento,
especialmente quando afeta os bons. A explicação do problema só poderia ser
dada quando os judeus tivessem noção de que, após a morte, existe outra vida,
em que os homens conservam plena consciência do que lhes acontece e, por isto,
são capazes de colher os frutos das obras praticadas na terra. Ora somente no Século II a.C (Jó é talvez do século V a.C) Israel chegou à noção de vida póstuma
consciente. Na era cristã, Jesus Cristo, o justo que sofre em expiação dos
pecados alheios e ressuscita dentre os mortos, projetaria nova luz sobre o
sentido do sofrimento.
Assim o livro de Jó se coloca na fase de transição entre as concepções
mais antigas referentes ao sofrimento e a mensagem do Novo Testamento.
Gênero Literário
É uma obra-prima da literatura do movimento sapiencial e salta aos olhos
o esquema literário cuidadosamente planejado. É inegável a unidade do livro,
razão pela qual se pode afirmar que o livro de Jó tem uma unidade orgânica.
Podemos verificar que o livro apresenta estrutura artificiosa, constando
dele prólogo e epílogo em prosa, enquadrando o corpo do livro, que é poético.
Uma tão artificiosa composição sugere que o autor não esteja descrevendo a
história propriamente, mas desenvolvendo outro gênero literário, que seria o do
diálogo filosófico religioso. Interessava ao autor debater um problema muito
focalizado tanto na literatura bíblica como na profana: o enigma do justo que
padece. “Na visão do autor, o livro formado por 1,1-42,6 representava o
equacionamento dos problemas dos exilados e, ao mesmo tempo, mostrava-lhes uma
perspectiva nova. Nessa perspectiva não sobrava nenhuma esperança de
restauração” (STORNIOLO, 2008).
Não há dúvida de que o escritor era um judeu, nutrido das obras dos
profetas e dos ensinamentos dos sábios. O tempo era a época patriarcal e o
lugar era nos confins da Arábia e do país de Edom. O livro pertence ao período pós-exílico.
“Não se aplica ao livro o gênero literário histórico. Trata-se de um livro
doutrinal, de tese, em que seu personagem principal, Jó, faz parte essencial
dos ensinamentos do autor sábio” (LÍNDEZ, 2011).
No particular, temos que discussão de um tema em termos abstratos não
era familiar aos israelitas nem aos antigos orientais. Foi por isto que, a fim
de propor suas considerações sobre o problema, o autor sagrado quis utilizar
uma narrativa de fundo histórico que circulava no mundo oriental: o drama de um
homem digno e aflito chamado Jó. Este drama serviu-lhe de ponto de partida para
as suas meditações; ele não hesitou em ornamentar e dramatizar o texto, a fim
de torná-lo veículo de suas idéias; com raro talento ele se escreveu valendo-se
de artifícios da didática na trama histórica primitiva. Daí se originou o livro
de Jó, no qual é difícil discernir os traços de história propriamente dita e os
recursos típicos do gênero literário.
Mensagem do Livro
O autor quis exprimir suas dúvidas a respeito da concepção tradicional
que associava quase mecanicamente virtude e felicidade, pecado e desgraça
temporal. Para fazê-lo, escolheu a forma de um debate entre diversos sábios.
Logo no início é posto o problema: eis um justo, Jó, que sofre.
Na discussão do problema, a tese tradicional tem três advogados, que são
os três amigos de Jó; incitam o infeliz a confessar seus pecados. Assim, os
três amigos são os defensores da “ortodoxia”; aceitaram sem discussão o
ensinamento clássico e recusam-se formalmente admitir que Jó não concorde com
os fatos no caso presente. É muito simples a posição deles: o sofrimento é
castigo do pecado; se um homem sofre é porque é um pecador. Jó não se dobra ao
convite, pois ele nada tem que o acuse. O herói torna-se assim o porta-voz das
dúvidas relativas à antiga sentença judaica; aponta o caso dos ímpios que
prosperam, e professa perplexidade diante dos seus sofrimentos.
Por isso Jó Protesta. Sabe que é inocente. O seu mundo caiu aos pedaços
à sua volta, porque ele também seguia a doutrina tradicional. Agora vê que ela
não se ajusta ao seu caso. Luta virilmente com o seu problema, mas não há
solução; seu sofrimento agora não tem o menor sentido e ele é tentado a pôr em
dúvida a justiça de Deus.
Os longos debates chegam ao final com a entrega da questão a Deus. O
verdadeiro conflito de Jó não é com os três amigos ou com a tradição, mas é com
Deus mesmo: “Aquilo que vocês sabem, eu também sei, não lhes ou inferior, ma é
com o Todo-Poderoso que eu desejaria falar, é com Deus que eu desejaria
discutir” (Jó 13,2-3). “O drama é uma espécie de júri simulado. Instaura um
processo em que comparecem Deus e o homem para acertarem as suas diferenças e
tirarem a limpo o conflito que existe” (MESTERS, 2012).
A grandeza de Jó está em que ele é capaz de desafiar os sofrimentos que
o perturbam para despojá-lo da sua fé no Deus oculto. Pode, na sua agonia, ter
criticado a Deus e seus caminhos, mas isso é compensado pelo seu brado a Deus e
seu anseio de encontrá-lo. Eis, porém, que o Senhor, em vez de dar a explicação
desejada, impõe silêncio a Jó: não queira o homem pedir contas a Deus. Reconheça,
antes, a sabedoria do Criador, atestada pelas maravilhas da natureza, e se
entregue, confiante, a ela.
Nos diálogos Jó luta com um problema torturante: ele está sofrendo, e
sabe que é inocente. A insuficiência da posição tradicional [1]
tornou-se patente, mas os homens podem fechar os olhos a uma nova verdade que
os perturba. Assim, ele resignou-se em aceitar a Deus como ele é e não
interpela mais os desígnios divinos.
Jó real é um homem de fé e dele podemos aprender que a fé num Deus cujos
caminhos não podemos conhecer nos conduz à paciência e à paz. A mensagem
religiosa do livro pode ser descrita em que o homem deve persistir na fé mesmo
quando seu espírito não encontra sossego. “Deus mostra confiança em Jó e
reconhece a sua firmeza e virtude mesmo ao passar por grandes sofrimentos”
(CERESKO, 2004).
Conclusão
O conflito de Jó provém de sua oposição à concepção tradicional distributiva
de Deus por Israel. Fomos levados a entrar nessa dialética e a percorrer o
caminho de Jó e de seus amigos para comprovar que poderemos descobrir a presença
de Deus no próprio sofrimento, não atrás e nem por fora dele.
O tema do justo que é provado e
sofre, apesar de inocente, é um tema comum que extrapola o tempo e o espaço – é
de ontem e de hoje, e principalmente de hoje, quando três quartos da humanidade
fazem a experiência de Jó. O drama apresentado no livro de Jó é o roteiro que alguém
percorreu na vida e que ele agora oferece como resultado da sua própria
experiência e busca. Oferece-o como um caminho possível para outros poderem
enfrentar, com ele, o mistério da dor, derrubando visões antigas que já não
resistem à realidade e à consciência nova que nasce. Jó e seus amigos são a
humanidade caminhando pela estrada da vida e da dor, discutindo, acabrunhada e
curvada sob o sofrimento que tanto pesa. É o conflito permanente entre
revelação e realidade: revelação, tal como está encarnada nos pensamentos da
cultura humana; realidade, tal como se apresenta, em cada época, à consciência
dos homens, questionando as coisas que vêm do passado. Tudo isso é expressão
típica da atitude dos sábios tendo a consciência de não querer ser derrotado pela
vida como ponto de partida da sua reflexão.
Finalmente, o livro indica a solução prática estritamente religiosa, que
é válida até hoje. Mesmo depois de Jesus Cristo, o homem não pode indicar o
motivo de todos os seus sofrimentos. Somente
a fé absoluta na infalível Providência Divina é capaz de superar todos os
sofrimentos. O sofrimento é disposto por Deus não como mera punição do pecado,
mas como remédio do próprio mal. A Cruz sobre o Calvário foi erguida como
árvore da vida e da ressurreição gloriosa. O homem, portanto, não sofre
unicamente para pagar um tributo à justiça, mas para se purificar do pecado e
voltar ao Pai com Cristo – o que é a suma felicidade.
REFERÊNCIAS
BETTENCOURT,
Dom Estevão. Para Entender o Antigo Testamento. 3ª. ed. Rio de Janeiro:
Livraria Agir Editora, 1965.
BÍBLIA DE
JERUSALÉM. Nova edição revista. 5ª. Impressão. São Paulo: Paulinas, 1991.
BRIGHT,
John. História de Israel. 9ª. ed. São Paulo: Paulus, 2010.
CERESKO,
Anthony R. A Sabedoria no Antigo Testamento, espiritualidade libertadora. São
Paulo: Paulus, 2004.
HARRINGTON,
Wilfrid J. Chave para a Bíblia: A Revelação, a Promessa, a Realização. 9ª. ed.
São Paulo: Paulus, 2008.
LINDEZ,
José Vílchez. Sabedoria e Sábios em Israel. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2011.
MESTERS,
Carlos. Deus, onde estás? Uma introdução prática à Bíblia. 16 ed. Petrópolis:
Vozes, 2012.
STORNIOLO,
Ivo. Como ler o Livro de Jó: O Desafio da verdadeira religião. 5ª. ed. São
Paulo: Paulus, 2008.
TAMAYO,
Juan José. Novo Dicionário de Teologia. São Paulo: Paulus, 2009.
[1] A
doutrina tradicional da retribuição, na sua mais singela forma, diz que os bons
são recompensados e os maus são punidos nesta vida.
Até Breve!
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