Sagrada Escritura
O povo com o qual Deus fez a primeira Aliança é,
também, denominado “povo de Deus”. Este povo desenvolveu-se perto do Mar Mediterrâneo,
no Oriente Médio, onde hoje estão Israel e Palestina. No início, era um pequeno
grupo de migrantes que saiu da Mesopotâmia e eram chamados hebreus, liderados
por Abrão que passou a se chamar Abraão[1],
um rico chefe de tribo, da região de Ur, na Caldeia, sul do atual Iraque. Os
hebreus se distinguiam por acreditarem num Deus único e pela consciência de que
este Deus, de bondade pura, caminhava com eles. Ao longo da história, este povo
teve outras denominações como, por exemplo, povo de Israel, povo Judeu. Este
trabalho cuidará de levantar os aspectos relacionados à mensagem teológica
presente nas narrativas acerca dos patriarcas Abraão, Isaac, Jacó e José, que,
em grande parte de suas vidas, peregrinaram de um lugar para outro seguindo itinerários
que cobriram um amplo raio que vai desde Ur dos Caldeus, na Mesopotâmia, até o
Egito, passando por Harã e Canaã, destino final e onde eles residiram a maior
parte do tempo. Como descreveremos a seguir, esses itinerários patriarcais
contribuíram decisivamente para que houvesse uma coesão dos legados teológicos
por eles deixados.
Abraão, o Pai da fé
Descendente de Sem, Abraão, em obediência ao
chamado de Deus, deixou sua terra e foi
em direção à Terra Prometida. Esta obediência implicava sacrifício, mas a sua
fé era grande. Pôs-se em viagem, deixou sua pátria e suas propriedades levando
consigo sua esposa Sarai, que passou a se chamar Sara[2],
seu sobrinho Lot e grande quantidade de servos e chegaram à terra de Canaã.
Caminhou por Siquem, Hebron, Betel e Bersabé. Andou também até o Egito.
Algumas características da personalidade de Abraão,
modelo de fé, levaram-no a uma conversão total implicando transformação de sua
própria vida. A narração bíblica de sua vocação mostra-nos um homem temente e
obediente a Deus e que nem as condições de limites físicos e emocionais o levaram
a desacreditar na vontade do Senhor. Diante de sua adiantada idade, com mais de
cem anos, e tendo presente a condição de esterilidade de sua esposa, demonstrou
personalidade decidida e buscou fazer a sua parte e não ficar de braços
cruzados na espera da realização das promessas. Adotou como filho um servo, mas
foi-lhe dirigida pelo Senhor a palavra de que “não será esse o seu herdeiro,
mas alguém saído de seu sangue”[3]. A
fé de Abraão é a confiança numa promessa humana irrealizável.
Por conselho de sua mulher Sara, Abraão se uniu a
uma escrava, Agar, que deu à luz Ismael. Fez isto porque era costume na época
considerar filho da esposa o filho da escrava da esposa, quando ela consentia.
Também desta vez Deus se manifestou dizendo que a sua descendência proviria
dele e de Sarai[4].
Abraão ficou agora sem saber o que fazer, mas acreditou e esperou. No entanto, Abraão
e Sara envelheciam. Um dia, enquanto estava acampado em Mambré, apareceram três
anjos sob a forma humana e lhe anunciaram o nascimento de um filho, o que
aconteceu um ano depois. O filho foi chamado Isaac[5].
Tudo parecia resolvido, mas a fé de Abraão devia
ser ainda duramente provada. O filho cresceu e se tornou adolescente. Deus
mandou que lhe imolasse Isaac no monte Moriá. Sem duvidar mais uma vez, Abraão
passou na prova da fé e da obediência. No último momento Deus impediu o
sacrifício e lhe renovou todas as promessas[6].
Que sentido pode-se tirar desse episódio? Deus é o
Deus da vida e não da morte. O testemunho dado por Abraão de obedecer fielmente
à vontade de Deus denotou sua disposição sempre viva de fazer o que Deus lhe
ordenasse, mesmo que lhe custasse a vida de seu único filho. Abraão morreu aos
175 anos de idade e foi sepultado numa gruta que ele comprou de um heteu sem
ter um palmo de terra própria. Deus lhe tinha prometido que seria pai de uma
grande nação numa Terra Prometida. A promessa de Deus se cumpriu na sua
descendência [7].
A Continuidade da Promessa em Isaac
Abraão estava então quase no fim da vida e pensou
que Isaac devia constituir família, mas como o Senhor tinha proibido de fazer
desposar os seus descendentes com mulheres cananeias, mandou um velho servo a
Nacor na Mesopotâmia e ali foi encontrada Rebeca. Isaac a desposou e teve dela
dois filhos gêmeos: Esaú e Jacó.
Da mesma forma que acontecera com Abraão, temos que
para Isaac foi mantido o mesmo discurso divino relacionado à benção e à
promessa. A ele o Senhor apareceu e disse que estaria com ele, o abençoaria e
faria sua posteridade numerosa.[8]
Outra questão importante é que ele se tornou extremamente rico e pôde restituir
ao povo hebreu os poços que tinham sido cavados nos dias de seu pai Abraão e
que os filisteus tinham entulhado[9].
Jacó, o Pai das Doze Tribos de Israel.
Com relação à descendência de Isaac observa-se que
seu filho Esaú cedeu o seu direito à primogenitura a Jacó por um prato de
lentilhas[10].
Usando de ardil ao fazer-se passar por seu irmão[11],
Jacó logrou obter a benção de primogenitura à época em que Isaac já se
encontrava em idade avançada. Esaú passou a odiar Jacó por causa da benção que
seu pai lhe dera[12].
Jacó teve que fugir para Harã onde se casou com duas irmãs, Lia e Raquel, e
depois de muitas vicissitudes voltou a se reconciliar com seu irmão Esaú[13].
Releva observar que Jacó teve um sonho onde o
Senhor lhe renovava as mesmas promessas que haviam sido feitas a Abraão e a
Isaac[14].
Em outro episódio, Deus, em forma de homem, se pôs a lutar com Jacó e os dois
lutaram até a aurora despontar. Deus o aleijou, mas não conseguiu vencer Jacó
que não o quis largar até ter recebido dele sua benção. Na ocasião Deus mudou o
nome de Jacó para Israel, que significa “aquele que luta com Deus e vence” [15].
Israel teve doze filhos. Deles surgiram as doze
tribos de Israel. O mais velho foi Rubem que também cedeu o direito à
primogenitura para Judá. Entre os filhos de Jacó, o mais novo, era José,
nascido da esposa predileta de Israel: Raquel. Israel tinha para com ele um
amor especial por ser o filho de sua velhice. Por isso era invejado pelos seus
irmãos. Além disto, ele frequentemente tinha sonhos proféticos, o que
incomodava os irmãos.
José do Egito, o filho de Israel
A longa narração da história de José pertence à tradição
Eloísta. Para os Javistas, Deus se manifestava de forma antropomórfica, para os
eloístas os sonhos punham o homem em contato com Deus, sendo muitas vezes
considerados como revelação do futuro, como presságios. José tinha este dom de
Deus: ter manifestações divinas através de sonhos e o dom de interpretar os
sonhos dos outros.
Por causa da inveja, os irmãos de José o venderam
como escravo e ele foi levado para o Egito. Deus estava com José e lá no Egito,
embora passando sofrimentos e tentações, se tornou grande e poderoso, eis que revelou
o sentido de um sonho do Faraó que se encantou com ele e o nomeou Vice-Rei do
Egito.
Durante um grande período de carestia, o clã de
Israel se viu obrigado a procurar alimentos no Egito. Foi lá que José
reencontrou seus irmãos e lhes perdoou o mal que eles lhe tinham causado.
Mandou vir para o Egito toda a sua família e encontrou seu velho pai, Israel
(Jacó), tendo recebido sua bênção. Conheceu seu irmão Benjamim, que tinha
nascido depois de sua partida ao Egito, e viveu seus últimos anos abençoado por
Deus. José e seus irmãos formaram as 12
tribos que deram origem ao povo eleito.
A história de José leva-nos a enxergá-lo como um
tipo de José, esposo de Maria. A passagem em que o Faraó disse a José: “Visto
que Deus te fez saber tudo isso, não há ninguém tão inteligente e sábio como
tu. Tu serás o administrador de meu palácio e todo o meu povo se conformará às
tuas ordens, só no trono te precederei”. José morreu com a idade de cento e dez
anos; embalsamaram-no e foi posto num sarcófago, no Egito[16].
Patriarcas, líderes do Povo escolhido por Deus
A riqueza de bênçãos com que Javé impera na
natureza e na história também é tema das histórias dos patriarcas: “O Senhor
abençoa seu povo pela promessa de terra e descendência. Este povo deve
tornar-se bênção para todos os povos” (SCHNEIDER, 2012). “As promessas divinas
perpassam como água por todas as narrativas dos patriarcas” (LÓPEZ, 2006), a
saber:
I.
Promessa de um filho: Gn 15,4; 16,11;
17,16.19-21; 18,10.14 (Abraão)
II.
Promessa de descendentes: Gn 12,2;
13,16; 15,5; 16,10; 17,2.4-6; 21,12-13; 22,16-18 (Abraão); 26,4.24 (Isaac);
28,14; 35,11; 46,3 (Jacó).
III.
Promessa de uma terra: Gn 12,1.7;
13,14-15.17; 15,7.13-16.18; 17,8 (Abraão); 26,2-4 (Isaac); 28,13.15; 35,12
(Jacó).
IV.
Promessa de assistência/acompanhamento: Gn
26,3.24 (Isaac); 28,15; 31,3. 46,4 (Jacó)
V.
Promessa de bênção: 12,2-3; 17,16.20;
22,17.18 (Abraão); 26,4.24 (Isaac); 28,14 (Jacó)
Nas narrativas de José, faltam os discursos divinos
e, consequentemente, também as promessas. José conhece a vontade de Deus por
meio dos sonhos. Os discursos divinos se situam na perspectiva do patriarca ao
qual se dirigem, mas apontam em última instância para a história de Israel.
Alguns constituem um verdadeiro programa divino não somente para os patriarcas,
mas também para os seus descendentes.
Ao que se sabe hoje, a época dos patriarcas não
pode ser demarcada como período claramente delimitado. Mais importante é saber
da característica do seu modo de vida como pacatos pastores de gado de pequeno
porte na periferia da terra de cultura. Este modo de existência marcou a
experiência de Deus para eles, a qual pode ser sintetizada nos seguintes
aspectos:
a) Deus providencia o espaço vital necessário (promessa da terra);
b) A continuidade de existência do clã (promessa da descendência).
A estrutura linguística “O Deus de Abraão, Isaac e
Jacó” ou “O Deus do meu/teu Pai” introduz um componente pessoal na experiência
de Deus. O Deus cultuado dá proteção ao clã que o adora e acompanha os grupos
migrantes. Deus não se prende a um lugar, mas a uma comunidade humana.
A maioria dos exegetas parte hoje da premissa de
que os patriarcas foram personagens históricos – certamente lideres ou
patriarcas fundadores de clãs nômades --, ao redor dos quais se teceram
incialmente narrativas em tradição oral, nas quais também entraram experiências
posteriores dos respectivos clãs.
O mais antigo material de tradição dos patriarcas a entrar na
consciência israelita global foi provavelmente aquele a respeito de Jacó.
Somente Jacó é pressuposto em Dt 26, 5-9; somente ele foi associado a temas
posteriores do Pentateuco, ao se tornar o pai dos patriarcas das Doze Tribos,
inclusive emigrando com elas para o Egito. Somente por intermédio dele é que os
outros patriarcas foram associados com aqueles temas, mercê da associação
genealógica iniciada por Jacó e seus filhos. (FOHRER, G. Geschichte, 39 apud SCHNEIDER 2012, 61).
No tocante à questão discutida de como a
experiência dos patriarcas com Deus estava relacionada com o culto ao Deus
criador EL na terra de cultura Cananeia, para onde migraram os clãs nômades,
parece que houve um processo de assimilação ao longo do qual os patriarcas e
seus descendentes passaram a cultuar como seu Deus familiar a divindade
criadora conhecida em toda Canaã. Abraão se distinguia dos demais habitantes de
Haran, por adorar um Deus único, enquanto todos ali eram politeístas.
Na tradição de fé israelita as experiências com
Deus narradas nas histórias dos patriarcas são associadas, tanto em termos
terminológicos quanto genealógicos, com a fé em Javé do grupo de Moisés. Aparentemente
o nome Javé desenvolveu tamanha força integradora pelas memórias históricas a
ele associadas, que nele também se puderam inserir as experiências de alguns
clãs familiares não sedentários.
Nos tempos atuais temos igualmente que “Os
patriarcas [...] foram e serão sempre venerados como santos em todas as
tradições litúrgicas da Igreja” (CEC, 61).
Conclusão
Abraão foi o iniciador de um grande povo, de uma
grande nação. A promessa a ele feita e o pacto de aliança não se referem apenas
a um reino material, mas acima de tudo a um reino espiritual. A aliança de amor
entre Deus e os homens, prometida a Abraão e a seus descendentes se estende a
todos os povos do mundo[17].
É por isso que Abraão é chamado de pai dos que crêem; por sua experiência de
fé, ele é o pai de todos aqueles que crêem e amam a Deus. Por sua fé, Abraão é
reconhecido “justo”. Justo é a pessoa que se “ajusta” no projeto de Deus que
adere à sua Palavra, porque a fé não é um simples acreditar em “mitos”, histórias
ou verdades acerca dos deuses.
As revelações de Deus vieram lentamente, geração
após geração. A fé é responder a um chamado pessoal de Deus, uma vocação,
porque toda a nossa vida é vocação. A fé é acolher Deus que quer fazer a sua
história junto com os homens. É abrir o coração à vontade de Deus. É o
relacionamento de amizade com Deus. Este grande legado -- a fé em um Deus único
e universal -- nos foi deixado pelos patriarcas Abraão, Isaac, Jacó (Israel) e
José, que acreditaram em Deus e a benção de Deus foi-lhes atribuída como
justiça.
Referências
BÍBLIA de Jerusalém. SP: Paulus, 2002.
BETTENCOURT, Dom Estevão. Para
Entender o Antigo Testamento. 3.ed.
RJ: Agir, 1965.
CATECISCIMO DA IGREJA CATÓLICA. SP: Loyola, 2000.
LÓPEZ, Félix Garcia. O Pentateuco:
introdução à leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia. 2.ed. SP: Ave
Maria, 2006.
NOVO DICIONÁRIO DE TEOLOGIA. SP: Paulus, 2009.
SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual
de Dogmática - Volume I. 4.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
TRESE, Leo J. A Fé Explicada.
5.ed. SP: Quadrante: 1990.
[1]
“Quanto a mim, eis a minha aliança contigo: serás pai de uma multidão de
nações; E não mais te chamarás Abrão, mas teu nome será Abrão, pois eu te faço
pai de uma multidão de nações” (Gn 17,4-5). Segundo a concepção antiga, o nome
de um ser não apenas o designa, mas determina a sua natureza. Mudança de nome
marca, pois, mudança de destino. De fato, Abrão e Abraão parecem ser duas
formas dialetais do mesmo nome e significar igualmente: “Ele é grande quanto ao
seu pai, ele é de nobre linhagem.” Mas Abraão é explicado aqui pela assonância
com ab hamôn, “pai de multidão”.
[2]
Sara e Sarai são duas formas do mesmo nome, que significa princesa; Sara será,
com efeito, mãe de reis.
[3] Gn 15,14.
[4] Gn 17,19.
[5] Gn 21,3.
[6] Gn 22,15-18.
[7] Gn 25,7-11.
[8] Gn
26,3-4.
[9] O
Gênesis atribui aos Patriarcas, pastores de rebanhos, a abertura de numerosos
poços.
[10] Gn 25,29-34
[11] Gn 27,24
[12] Gn 27,41.
[13] Gn 33,4.
[14] Gn 28,10-22.
[15] Gn 32,23-33.
[16] Gn 50,26.
[17]
CEC, 60