“CRISTANDADE”
O
objetivo do presente trabalho é efetuar uma breve análise da ascensão e queda
do fenômeno da “cristandade” e suas consequências na perspectiva histórica da
Igreja.
Buscaremos traçar um paralelo entre os fatores que contribuíram para
que o cristianismo ascendesse de uma posição de religio illicita para o status de religião oficial do estado por um
longo período, bem com trazer à discussão os fatores relacionados com a secularização
da sociedade, que abalaram e levaram ao enfraquecimento dos elementos basilares
da “cristandade”.
Neste trabalho serão particularizadas as situações
pertinentes à Igreja na América Latina e no Brasil.
As
origens históricas da cristandade situam-se no início do século IV, quando
Constantino, o Grande (306-337), põe fim ao período de perseguição aos cristãos,
incorporando o cristianismo ao Estado Romano. Desta forma, com o Edito de Milão
(313) foi concedida plena liberdade de religião e de culto a todos os cidadãos
do Império. Inaugura-se um novo tempo do cristianismo. Em 391, Teodósio I
(379-395) proíbe categoricamente o culto pagão em todo o Império e, pouco
depois, o cristianismo adquire o status de “religião de Estado”. Surge assim a
primeira cristandade com as inconfundíveis marcas da romanidade.
É
na Idade Média que semelhante modelo de união Igreja-Estado se desenvolve e
consolida. Significativa nesse contexto é a figura de Carlos Magno (768-814),
que se auto-identifica como “rei-sacerdote” e, por isso, o natural protetor e
propagador da Igreja, “por vocação divina”. Usa até a força bélica para impor a
religião cristã a súditos rebeldes. Carlos cognominado “o Grande” pelos seus
contemporâneos, apresenta-se como o “novo imperador Constantino”, escolhido por
Deus para defender a cristandade e implantar por toda parte “a verdadeira fé”.
Na
América espanhola, a Igreja, por seu tuno, era extraordinariamente rica e se
destacava em importância perante o resto da sociedade. Suas rendas, muito
altas, eram obtidas por meio de três fontes principais de receitas, a saber:
a) A
primeira delas eram os proventos obtidos de suas propriedades rurais e urbanas,
que eram inumeráveis;
b) A
segunda fonte eram os dízimos, isto é, impostos obrigatórios cobrados sobre
todas as produções e rendas que, por ordem papal, eram administrados pela
Coroa; e.
c) A terceira provinha das rendas de capelanias[1] e
censos[2].
“Isso significava a concentração nas mãos da Igreja de um vasto capital,
responsável por sua transformação em um verdadeiro banco” (PRADO, 1994 P.10).
As
ligações entre a Coroa Espanhola e a Igreja foram muito estreitas e sólidas. O
papel evangelizador exercido sobre os índios era a outra face da dominação
colonial. Essa ligação apareceria no chamado padroado, pelo qual o papa
outorgava aos reis espanhóis uma série de prerrogativas, entre as quais se
destacavam:
a)
O
direito da nomeação de bispos e curas,
b)
A
arrecadação de certos impostos,
c)
A
criação e demarcação de dioceses e paróquia.
Além
de tudo isso, a Igreja possuía um foro especial, o que a distinguia ainda mais
do restante da sociedade. É fácil prever que a Igreja tomaria partido em favor
da manutenção da ordem colonial que tantos privilégios lhe oferecia.
Mas,
havia uma nítida divisão entre os membros da Igreja, que se verificava em razão
da posição do chamado “baixo clero” que, vivendo em situações muito próximas às
dos pobres, tomou muitas vezes, para os padrões vigentes, posições radicais e
contestadoras, sobretudo pelas condições de vida miseráveis dos povos indígenas,
que sofriam discriminações de toda natureza e recebiam um tratamento
humilhante.
Na
fase que se seguiu ao período colonizador espanhol, observou-se que após
conquistar a independência, os estados que aos poucos se organizavam assumiram
como tarefa combater e destruir a velha ordem colonial. Um dos objetivos foi
destruir os foros especiais que gozava a Igreja. Essa luta desenvolveu-se com
muitas particularidades nacionais, “sendo a mais encarniçada aquela
desencadeada contra a Igreja e que em alguns países cindiu a sociedade em
defensores e acusadores da instituição todo-poderosa” (PRADO 1994 p.17). Essa luta
terminou, em geral, já no fim do século XIX com a separação total entre o
Estado e a Igreja e com a subordinação desta ao poder maior do Estado laico.
A
Igreja portuguesa e, por conseguinte, a Igreja no Brasil tinham menos poder e
menos riqueza que a Igreja da América espanhola. O Papa também havia cedido ao Rei
de Portugal o direito do padroado, pelo qual a coroa podia intervir nos
negócios eclesiásticos, nomeando bispos, demarcando paróquia. Os dízimos da
Igreja foram igualmente concedidos ao monarca português, que com eles devia
realizar uma série de benefícios para a Igreja e, principalmente, manter a
subsistência do clero com o pagamento das côngruas.
No
Brasil, o clero esteve muito ligado aos senhores de terra locais. Tornou-se
costume os filhos caçulas dos fazendeiros, por falta de melhor opção,
ordenarem-se padres. Com o passar do tempo, a identidade entre clero e os
senhores locais acentuou-se, fato sem paralelo na América espanhola. No Brasil,
a exploração da população mais pobre por parte do clero foi pouco praticada,
assim como a evangelização de espírito militante, ambas características do
clero da América espanhola.
O
projeto colonial se apoiava fortemente na Igreja e no Exército. Era inaceitável
para essas instituições o desaparecimento dos privilégios e dos foros especiais
a que estavam submetidas. “Para os defensores dessa situação, os fundamentos da
sociedade se situavam na ordem proposta pela Divina Providência e sustentada
pela Igreja Católica” (PRADO, 1994 p. 23). A fé, a tradição e a hierarquia eram
a justificativas únicas e plausíveis dos atos dos governantes. O sistema
político ideal era a monarquia, no qual Estado e Igreja permaneciam unidos; e a
educação devia ser religiosa, já que advogavam o princípio do fundamento
sobrenatural da sociedade. Mas, muitos da sociedade, principalmente os
liberais, se opunham a ordem estabelecida propondo a laicização da sociedade e
do Estado. Diziam que o poder emana do povo e resulta de um livre contrato
entre a sociedade e seus governantes, do qual a divindade passa ao largo. Para
eles devia-se separar o Estado da Igreja, subordinando-a ao poder laico. A
educação devia ser leiga, abandonando a Igreja seu lugar privilegiado nesse
campo.
Em
alguns países da América Latina, houve um forte embate entre setores liberais
laicos e a Igreja e seus aliados conservadores quanto aos projetos de
constituição dos Estados Nacionais. Eram
dois caminhos que consideravam as questões sociais, políticas e ideológicas de
forma distinta. A hegemonia ideológica da Igreja era um traço particularmente
notável em vários países hispano-americanos.
Vale
registrar que, no Brasil, a Igreja nunca foi um marco divisor nítido entre
conservadores e liberais. Pelo contrário, muitas vezes havia preferência do
clero pelos pensamentos dos liberais. Alguns gabinetes conservadores tomaram
atitudes hostis contra a Igreja, como, por exemplo, na chamada “Questão
Religiosa”, já no fim do Império, em que foram os conservadores que levaram ao
tribunal os bispos “desobedientes”. É preciso lembrar que a Igreja do Brasil,
tanto na Colônia como, depois, no Império, esteve firmemente subordinada ao
Estado.
Este
cenário de crise da “cristandade”, observado nas colônias latino-americanas,
fazia parte de um contexto mais abrangente verificado no Continente Europeu,
onde o movimento do ‘Renascimento’, no século XVI, provoca uma ruptura com o
passado medieval. A cultura européia torna-se cada vez mais antropocêntrica (o
homem é colocado no centro dos interesses) e, em conseqüência, assistimos a um
irreversível processo de secularização da sociedade.
Essa
tendência é reforçada com o nacionalismo do século XVIII, conhecido na história
como época do Iluminismo. Toda a atenção se volta para o homem como indivíduo,
e sua capacidade cognitiva é sumamente valorizada.
Desenvolve-se
um espírito crítico aos tradicionais “dogmas de fé” e às autoridades que os
sustentam e defendem. Semelhantes correntes manifestam-se fortemente na
Inglaterra, onde verificamos também suas primeiras aplicações práticas
(“Revolução Industrial”), mas é na França que vigoram com maior intensidade e
recebem sua expressão filosófica mais elaborada. A nota característica de seu
conteúdo é o anseio por liberdade em todas as atividades onde o homem está
inserido. Isso tudo em detrimento da tradicional submissão religiosa e
aceitação dos poderes estabelecidos.
Também
no campo religioso essas idéias têm ressonância, dando origem ao deísmo[3].
Cresce um indiferentismo ou até ceticismo em relação às formas religiosas
convencionais e particularmente à instituição eclesiástica. “A maçonaria,
surgida na Inglaterra, em 1717, torna-se um instrumento eficaz na divulgação da
mentalidade racionalista” (MATOS, 2011 P. 284).
Soma-se
a isso o fato de o sistema de colonização adotado pelos europeus ter-se mostrado
altamente violento: “Oitenta por cento dos índios da America mortos, em combate
ou por doença. Cinquenta por cento da população original da Oceania dizimada
somente no primeiro contato com os brancos. Grande parte dos povos da África
escravizada ou assassinada. A conquista européia das terras e dos povos
descobertos revestiu-se de um grau de violência poucas vezes visto na História”
(AMADO, 1989 p. 8).
Os
índios que se recusavam a obedecer ao rei europeu, ou a se converter, podiam
ser legalmente combatidos, pois esses casos eram considerados na Europa como
“guerra justa”. Antes do ataque, os índios rebeldes ouviam ultimatos e ameaças dos
capitães de conquista.
Finalmente,
podemos dizer que, em nome de Deus, todo tipo de exploração era utilizado
buscando o lucro e o poder. Foi
constante a preocupação em cristianizar as populações encontradas nos
territórios objetos da colonização. O próprio Rei estava pessoalmente comprometido
com tais questões como nos mostra a ordem dada por D. João III, rei de
Portugal, determinando a ida de pessoas às ditas terras para que a gente dela
se convertesse à fé católica. Assim, o
fato dos conquistadores não hesitarem em recorrer à força contribuiu para uma
situação onde emergiam revoltas e intolerâncias que, somados aos pensamentos
reinantes na Europa, em atitudes hostis à Igreja como instituição e
praticamente no fim da “cristandade”.
Referências
AMADO, JANAÍNA; GARCIA, LEDONIAS FRANCO.
Navegar é Preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus. 22ed. São Paulo:
Atual, 1989.
MATOS, HENRIQUE CRISTIANO JOSÉ. Nossa
História: 500 anos de presença da Igreja Católica no Brasil, tomo I, Período
Colonial. 3ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
PEREGALLI, ENRIQUE. A América que os
Europeus encontraram. 25ed. São Paulo: Atual, 1994.
POTESTÁ, GIAN LUCA; VIAN, GIOVANNI.
História do Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2013.
PRADO, MARIA LIGIA. A formação das
nações Latino-Americanas. 18ed. São Paulo: Atual, 1994.
[1]
“Capelanias eram rendas perpétuas deixadas a uma Igreja ou Convento em troca de
missas, que deviam ser rezadas pela alma de quem as havia deixado”. (PRADO,
1994 p. 10)
[2]
“Censo eclesiástico consistia na cessão da propriedade de terras da igreja a
particulares em troca de uma renda anual” (PRADO, 1994 P.10).
[3]
Deus existe, sim, mas se mantém a distância, e não influi efetivamente no
cotidiano dos homens e da natureza.
Boa Leitura!
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