O que um economista e sociólogo de
formação poderia sugerir a um teólogo para facilitar o diálogo
fé-economia? Há, na história da
humanidade, momentos de especial significado, quando são tomadas decisões que
vão marcar e condicionar a evolução futura e ocorrem fatos destinados a
repercutir intensamente e duradouramente, na vida das pessoas. São pontos de
inflexão, a indicar mudanças essenciais que, uma vez consumadas, permitirão
afirmar-se que a história não será mais a mesma.
Hoje
vivemos um momento particular, quer do ponto de vista da fé, quer do ponto de
vista da razão. No campo econômico podem-se observar mudanças profundas no que
toca à política e às transformações que se operam no tecido social, com
significativos reflexos no âmbito da moral e da fé católica. Vive o mundo um
período de grandes mudanças, com reivindicações crescentes da sociedade, em
seus vários segmentos, para a conformação de um mundo de paz, mais justo e
solidário socialmente. Por tudo
isso, este trabalho se faz tanto mais oportuno quanto é patente a necessidade
de compreender a característica de cada época da história do pensamento
econômico e seu impacto na vivência da moral e da fé católica. Coloca-se para nós a seguinte indagação: Qual
a finalidade de um sistema econômico? O homem dispõe dos recursos da natureza e
de suas próprias forças – tanto isoladamente como, sobretudo, em colaboração
com os outros homens – para alcançar seus fins.
Mas,
sabe-se que os recursos disponíveis – terra (recursos naturais), trabalho,
capital, tecnologia, informação, tempo – são escassos, e para enfrentar este
problema é necessária uma atividade racional (economia) de administração desses
recursos, que auxilie o ser humano na obtenção de seus objetivos. Portanto, é correto ou não afirmar que o fim
último de um sistema econômico é o fim mesmo da própria humanidade? No
particular, acreditamos que tanto a racionalidade econômica quanto a doutrina
católica irão nos ajudar a responder esta fundamental indagação. O próprio
envolvimento da Igreja, como perita em humanidade[1],
assumiu nos últimos dois séculos uma nova feição exigente, conciliadora e mais
presente diante da dinâmica da economia. Isso exigiu um grande esforço do
Magistério da Igreja Católica na elaboração de documentos, traduzidos em
exortações e cartas encíclicas, que serviram para formar uma doutrina
específica no campo social, da qual cuidaremos de analisar neste trabalho.
Outro aspecto
importante e que vamos reportar neste trabalho é a proximidade entre a economia
e o poder. Os governos instituídos tiveram o pensamento econômico vigente
sempre próximo de sua tutela. Aconteceu na Inglaterra da revolução industrial,
principal potência econômica dos séculos XVII e XVIII, onde, não por
coincidência, floresceu a economia clássica.
Não é à toa, também, que a Rússia, na implementação da revolução do
proletariado, toma para si os pensamentos socialistas de Karl Heinrich Marx
(1818-1883) [2] para contrapor ao liberalismo
dos ingleses Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823) e John Stuart
Mill (1806-1873).
Desta
forma, buscaremos fazer uma exposição sistemática e cronológica, que se inicia com o
estudo do pensamento econômico da antiguidade e da Idade Média, passando pelas
correntes Mercantilistas da Renascença, pela tradição liberal-individualista do
Século XVII e pelas reações do socialismo desenvolvidas no século XIX, até
chegar às manifestações mais recentes, representadas pelos pressupostos
doutrinários do intervencionismo, cujo expoente, nas economias ocidentais, foi
John Maynard Keynes (1883-1946).
Na
sequência iremos discorrer sobre o enfretamento das graves distorções no
mercado econômico utilizando dos ensinamentos deixados pela pessoa e missão de
Jesus Cristo e buscaremos, ainda, unir a narração dos acontecimentos à análise
positiva do comportamento cristão nas diversas épocas focalizadas. Isto
possibilita demonstrar a interdependência existente entre o comportamento
cristão e a superação dos principais problemas socioeconômicos da história. Merece
especial destaque no presente trabalho a atuação do Magistério da Igreja que, a
partir da publicação da Carta Encíclica Rerum Novarun -- a chamada
“Carta Magna do Operariado” – resgatou a primazia da Igreja como verdadeira
perita em humanidade.
Neste
particular, levou-se em consideração o contexto histórico de cada momento em
que foram elaborados os documentos da Igreja, ao mesmo tempo em que se
confrontou o conjunto das idéias ali defendidas com a realidade atual da
sociedade, para mostrar a vitalidade com que a Igreja Católica atuou em uma
parcela concreta de entraves sociais ao longo desses dois últimos séculos. Essa
vitalidade manifesta-se em uma incansável atitude de busca em que momentos de
luz mesclam-se a momentos de escuridão e de dúvida, como descrevemos neste
trabalho.
Por
isso, não se pretende ficar apenas no nível do exame e discussão de doutrinas[3]. As pesquisas literárias e as análises aqui
efetuadas buscam revelar a realidade triste ou alegre da vida que palpita sob a
reflexão e as formulações doutrinais econômicas e católicas. Disso, resulta um panorama ampliado onde se
pode observar a forma mais pastoral de entender o papel da hierarquia da Igreja
Católica e que a sua dimensão exclusivamente docente passa a integrar uma
função mais extensa de animação do próprio povo de Deus.
A metodologia
empregada, qual seja, a da pesquisa teórica, permite que a análise dos
contrastes entre os princípios da fé católica e as diversas correntes do
pensamento econômico reforce o significado e a importância do testemunho
pessoal do católico no sentido de conduzir ações em perfeita aderência ao “ser
imagem e semelhança de Deus” e de demonstrar que “não há oposição entre o mundo
que devemos construir e Deus que devemos amar” (BOFF, 1998, p.43). Verificamos
que é plenamente exequível interagir com a realidade social e modificá-la
positivamente com a adoção de atitudes cristãs, da qual se nutre a própria
tradição eclesial. O Vaticano II tem, igualmente, um papel decisivo no presente
estudo, sobretudo para a interpretação de todo o processo dinâmico da nova
atitude oficial da Igreja perante o homem moderno.
Cabe
aqui um registro: não pretendo apresentar um elenco completo dos documentos
e, menos ainda, uma análise exaustiva de seu conteúdo e ambiente histórico em
que se situam. A minha intenção é mais modesta: oferecer um esboço da
evolução socioeconômica a partir do exame dos principais documentos do
Magistério petrino e subsidiar a todos os interessados em conhecer melhor o
firme testemunho de amor e dedicação da Igreja pela humanidade, conforme o
alerta de Jesus Cristo, seu amado fundador:
Que
o injusto cometa ainda a injustiça e o sujo continue a sujar-se; que o justo
pratique ainda a justiça e que o santo continue a santificar-se. Eis que eu
venho em breve, e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme o
seu trabalho. Eu sou o Alfa e Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o
Fim. Felizes os que lavam suas vestes para terem poder sobre a árvore da Vida e
para entrarem na Cidade pelas portas. Ficarão de fora os cães, os mágicos, os
impudicos, os homicidas, os idólatras e todos os que amam ou praticam a mentira
(Ap 22,11-15).
[1] A
Igreja, “perita em humanidade”, é uma nomenclatura que já se tornou um
patrimônio da linguagem eclesial e eclesiástica, e a sua fonte é a Carta
Encíclica do Papa Paulo VI – Populorum Progressio (sobre o Desenvolvimento dos Povos de 26.03.67, nº. 13) e
repetida incontáveis vezes em outros documentos do Magistério e quer
significar, em função da sua missão, todo o empenho de se por à serviço de cada
homem e do mundo inteiro (JOÃO PAULO II, VS, 2006, n. 3, p 8).
[2] Filósofo alemão do século XIX.
[3] Uma doutrina
econômica constitui, a um só tempo, um projeto de organização econômica de dada
sociedade e uma interpretação da atividade econômica de dada época. A ciência
visa à explicação dos fenômenos econômicos. A doutrina contém os elementos da
política econômica escolhida para realizar a organização desejada.